As últimas eleições legislativas não estavam a anunciar nada de bom mas acabaram por ser bem piores do que estava previsto. Até se pode dizer que foram completamente paradigmáticas e abriram caminho à legitimação social do Chega e do discurso de ódio nos média e no centro do debate político.
Além do resultado desastroso do PS (em parte resultante dos jogos políticos cínicos que marcaram o caminho para a maioria absoluta de 2022), as esquerdas anticapitalistas portuguesas, que foram cruciais no combate ao vários governos de direita, ficaram reduzidas a quase nada. O único partido não direitista cuja votação aumentou foi o Livre, que em termos práticos funciona como um abutre dos desastres eleitorais do PCP e do Bloco de Esquerda.
O desastre democrático não fica apenas demonstrado no cenário político-partidário. O futuro do jornalismo, em crise e quase nulificado no seu papel de escrutinador do poder político, está carregado de nuvens cada vez mais negras. A ascensão do Chega e a radicalização da direita andam lado a lado com uma «orbanização» da comunicação social portuguesa, que demonstrou (apesar das absurdas críticas de Ventura e Montenegro) um tendenciosismo para valorizar a mundivisão da direita conservadora, nomeadamente a demonização dos imigrantes perante a opinião pública, e a defesa incondicional da «estabilidade», em particular quando a direita é governo e maioria. O melhor exemplo, quase metafórico, é a substituição do programa Linhas Vermelhas pelo Linhas Direitas, no qual a SIC Notícias nos vai presentear com um programa de debate em horário nobre, cujos comentadores serão Miguel Morgado, o passista de serviço, a deputada do Chega Cristina Rodrigues e o liberal Carlos Guimarães Pinto. A justificação perante tamanha vergonha ética e democrática é, nas palavras do diretor de informação da SIC, Bernardo Ferrão, a de que seria preciso «refletir o xadrez democrático»1. Só que o xadrez apenas conta quando um partido neofascista tem 60 deputados.
Neste contexto muito difícil para as Esquerdas, que apesar de terem conseguido identificar já muitos dos problemas referidos acabaram infelizmente por se refugiar numa espécie de fatalismo dos tempos, como bem apontou o João Moreira da Silva aqui no Desatempo2, ao destacar o teor quase martirizante dos discursos de Paulo Raimundo e Mariana Mortágua na noite eleitoral. O Bloco e a CDU identificaram bem a maneira como a comunicação social espelha os pontos de vista da direita e da extrema-direita, mas infelizmente recusam-se a procurar soluções práticas e claras para combater as ofensivas digitais e mediáticas da extrema-direita.
A falta de estratégia de resposta, de análise sociológica profunda e de posicionamento claro sobre certos temas apenas beneficiou o Livre, que montou ardilosamente uma estratégia de culpabilizar as esquerdas pelo fim da Geringonça pela ausência de momentum eleitoral do Centro-Esquerda e Esquerda no seu conjunto. Rui Tavares montou a sua narrativa política pegando nos argumentos utilizados por António Costa durante a discussão do OE de 2021. A total falta de disponibilidade em acertar estratégias também é um grande favor que estes partidos fazem ao Livre e a um PS que eventualmente se consiga levantar do buraco onde se meteu.
Não existem soluções simples para o molho de brócolos onde a Esquerda anticapitalista portuguesa está afundada. Mas é importante lembrar que a CDU e o Bloco formaram, em conjunto, a terceira força política entre 2005 e 2022, algo apenas comparável aos resultados da APU/CDU nos anos 70 e 80, em que o contexto internacional era mais favorável (a URSS ainda existia) e o legado da Revolução de Abril estava bem presente na sociedade portuguesa.
Apesar do enfraquecimento relativo do PCP a partir dos anos 90, os comunistas conseguiram manter-se sempre com um grupo parlamentar entre os 12 e os 17 deputados durante 30 anos – nada mau para o partido que estava, segundo as metanarrativas mediáticas, supostamente moribundo já nos tempos de Carlos Carvalhas. O Bloco chegou rapidamente ao estatuto de terceira ou quarta força política nos seus primeiros 15 anos de existência. O Livre, apresentado como o futuro da esquerda, só conseguiu chegar ao parlamento em 2019, e o seu melhor resultado de sempre é igual ao desastroso resultado da CDU nas legislativas de 2022.
Considero que uma das primeiras respostas óbvias deve ser substituir o fatalismo por, pelo menos, uma discussão séria sobre juntar forças para estancar a sangria iniciada pelos jogos cínicos do PS de António Costa, que é aproveitada pelo Livre e agravada pela ascensão do neofascismo. Ambos os partidos têm mesmo de discutir internamente e entre si o legado da Geringonça, e olhar para a maneira como se relacionam com as suas tradicionais bases sociais: o ativismo social no caso do Bloco de Esquerda e o sindicalismo no caso do PCP.
O espírito do Partido-Movimento perdeu muita força nos últimos anos – muitos temas que tinham força mediática há poucos anos deixaram de a ter e isso afetou significativamente a capacidade de criar agenda do Bloco. Um caso ainda mais grave e estrutural é o dos sindicatos, que não têm capacidade de mobilização entre os jovens, os imigrantes e os precários, e que justificam a falta de estratégia e atenção aos trabalhadores dos serviços e intermitentes com a natureza antissindical do atual código laboral. Os sindicatos têm a força concentrada nos trabalhadores (nomeadamente os contratados de setores essenciais públicos) que têm condições e basicamente permissão para protestarem pelos seus direitos. Alguns destes sindicatos, como a Fectrans, têm pouca capacidade de comunicação num contexto em que já grande parte da linha editorial dos órgãos de comunicação social contradizem e omitem os motivos legítimos das contestações e greves. Quando existe uma paralisação total dos comboios na semana das legislativas, a Fectrans deve defender e lutar para que as suas legítimas posições sejam constantemente ouvidas. Não é um trabalho fácil, mas é algo que tem de ser feito.
O que não pode mesmo acontecer é que as convicções e aquilo que marca ambos os partidos de esquerda passem a ser escapismo e criação de zonas de conforto desligadas de uma real vontade de mudar a situação atual. Uma esquerda embriagada de nostalgia não honra o seu passado – a memória das lutas antifascistas e as conquistas populares da Revolução de Abril devem servir para inspirar a construção de projetos para o futuro.
Concluindo, a esquerda tem de voltar a falar criticamente de si própria sem medos, estabelecer urgentemente vasos comunicantes, e parar de ter medo das suas próprias convicções. Estamos a chegar a um ponto civilizacional em que o senso comum, a decência, a empatia e a solidariedade fraterna de classe começam a ser retratadas como ideias radicais e utópicas. Sejamos assumidamente radicais; pensemos seriamente os projetos e objetivos de forma que a esquerda à esquerda do centro não passe definitivamente a ter o seu epicentro num projeto progressista mundano que apoia a corrida aos armamentos, o europeísmo acrítico e a essencialização da ideia da Geringonça. Se houver abertura para uma discussão franca entre Bloco e CDU sobre as batalhas que têm de ser travadas em conjunto, já é um bom começo.
Daniel Macedo tem 26 anos e está à espera de defender a tese de Mestrado em Jornalismo. Gosta de temáticas do leste europeu e de canecas de cerveja. Já estagiou num jornal mas só lhe pagaram em cartão de compras do Continente.