[FICAR A VER NAVIOS]

25.5.2025
A Grande Onda de Kanagawa, Hokusai (1830-31)
A Grande Onda de Kanagawa, Hokusai (1830-31)

As soon as we let go of the universal as a self-fulfilling abstract truth, we must become embroiled in specific situations. And thus, it is necessary to begin again, and again, in the middle of things.

Anna Tsing

«Não escolhemos os tempos em que vivemos.» A frase foi dita por Mariana Mortágua durante a pior noite eleitoral na história do Bloco de Esquerda. «A viragem à direita no mundo», explicou a deputada, «leva a esperança e arrasta a ideologia do medo e do ódio.» As suas palavras representam, na perfeição, o espírito calamitoso que assombra a esquerda portuguesa desde domingo. Nas entrelinhas, está a mensagem central: Portugal, no canto da Europa, levará agora com a vaga de extrema-direita que vai conquistando o mundo, país a país. Resta-nos a nós, à esquerda, «resistir» – a palavra usada por Paulo Raimundo após a CDU eleger três deputados. Enquanto ouvimos estas canções do apocalipse, pensamos: não haverá alternativa para a esquerda? Estamos condenados a jogar à defesa, a aceitar «os tempos em que vivemos», a preparar a melhor resistência possível ao tsunami que por aqui entra? Em poucas palavras: a vitória de movimentos fascizantes é inevitável? Talvez seja. Mas escrever de antemão a história do futuro não só é um erro estratégico, como é impossível.

A ideia central nos discursos da esquerda parlamentar, que se repetem vezes sem conta ao longo destes dias, é a difusão. Dizem-nos que está em andamento a difusão de uma agenda autoritária, que se «arrasta» de país em país, como uma onda uniforme que apenas altera o seu idioma e cara. Modi em hindi, Trump em inglês, Meloni em italiano, Órban em húngaro, Ventura em português – todos farinha do mesmo saco, prontos a aplicar a fórmula antidemocrática aos seus territórios. Estas teses têm uma certa razão: como apontou Paulo Raimundo na noite eleitoral, o resultado do Chega é «inseparável dos meios financeiros, mediáticos e outros que hoje estão colocados pelo capital ao serviço da promoção de um quadro de valores reacionários e antidemocráticos, favorecendo forças que alimentam a demagogia, a mentira, a manipulação e o ódio.» A extrema-direita floresce através da entreajuda internacional, como vimos na campanha pró-AFD que Vance protagonizou nas vésperas das eleições alemãs, ou pelas redes de financiamento comuns a estes partidos. Em Portugal, jornalistas como Pedro Coelho e Ricardo Cabral Fernandes já demonstraram estas trocas de conhecimento e financiamento no caso do Chega, entre outros movimentos de extrema-direita nacional.

No entanto, a tese da difusão tem os seus limites. Será que esta vaga fascizante está simplesmente a «arrastar-se» pelo mundo fora? Observamos nesta análise reverberações de velhas narrativas sobre o capitalismo, nacionalismo, colonialismo, ou tantos outros -ismos, quando se referem a estes como estruturas económicas, políticas e intelectuais que apenas se «arrastam» de local em local, produzindo um sistema uniforme de poder em todo o mundo. O grande problema nestas teses difusionistas é que estes processos, ditos globais, nunca se reproduziram da mesma forma em diferentes locais. Apesar de partir de bases ideológicas comuns, o capitalismo nunca será exatamente igual em Portugal, nos Estados Unidos ou no Brasil. A tradução da estrutura capitalista é feita por atores locais, dentro de um determinado campo de possibilidades. Ou seja, o capitalismo não chega a estes territórios como um tsunami, mas é reconstruído em cada sítio com as ferramentas possíveis, transformando-se assim em cada nova experiência. Se as ferramentas forem de boa qualidade, o capitalismo pode singrar com ainda mais força do que singrou em outros locais; se as ferramentas estiverem indisponíveis, ou forem fracas, o capitalismo terá dificuldade em implementar-se. A esta tensão, entre fenómenos globais e a sua implementação em contextos locais, Anna Tsing dá o nome de fricção.

São as fricções de cada local, de cada país, que determinarão o sucesso – ou insucesso – de movimentos que se expandem à escala global. Tsing recusa, por isso, a tese de que «o poder global opera como uma máquina bem oleada.» No caso do capitalismo, a antropóloga explica: «em vez de presumirmos que já sabemos o que é o capitalismo global, mesmo antes de ele chegar, precisamos de descobrir como ele opera na fricção.» Para ilustrar a sua tese, Tsing usa o exemplo da entrada de empresas internacionais de exploração de madeira na Indonésia, explicando como estas se depararam com direitos consuetudinários locais sobre a terra, sistemas legais conflituantes e resistência ou colaboração por parte das comunidades indígenas. A implementação do modelo capitalista não foi uma mera imposição do exterior, um tsunami que entrou pela costa, mas sim um processo complexo de negociação no contexto local. Podemos transpor esta mesma lógica para o crescimento da extrema-direita em Portugal: em vez de anunciarmos a sua vitória antes de ela acontecer, ou de presumirmos que ela se desenrolará da mesma forma que nos Estados Unidos, na Brasil ou na Hungria, devemos olhar para as fricções do nosso contexto nacional. É nestas fricções, e do uso que se faz delas, que se decidirá quem sairá vitorioso no final.

Neste momento, é a extrema-direita que está a fazer melhor uso, que melhor interpreta, as fricções do país. A exploração da ciganofobia, a evocação de mitos imperiais, a mensagem anticorrupção feita com base nos casos judiciais dos partidos do centro, a crítica do «abandono» de regiões como o Algarve. Mensagens cuja base ideológica é partilhada com as extremas-direitas alemã, estadunidense, brasileira, mas cuja tradução é cuidadosamente reformulada para o contexto local. Assim, a extrema-direita que aqui se constrói é inovadora – e, por isso, imprevisível. Significa isto que pode ser, em termos coloquiais, bastante «pior» do que nos outros país. Com mais margem para ser ditatorial, para afastar os partidos convencionais, para produzir uma nova linguagem política à qual nos resta a nós, apenas, reagir. Mas nem todas as fricções abrem, necessariamente, o caminho a uma construção de um novo modelo fascizante em território nacional – podem, pelo contrário, ser obstáculos ao autoritarismo.

A grande questão, para uma esquerda que se quer apresentar como verdadeira alternativa, é perceber quais são as fricções no seu contexto local, quais são as fricções que constituem um obstáculo ao crescimento da extrema-direita e que podem formar a base de um projeto político adequado a este contexto. A inspiração em experiências do passado ou em experiências internacionais – desde revoluções do século XIX às multidões que Bernie Sanders e Ocasio-Cortez galvanizam agora nos Estados Unidos – é necessária, mas desenganemo-nos se achamos que podemos, simplesmente, importar as mesmas estratégias eleitorais da esquerda francesa ou alemã holandesas e aguardar pelos mesmos resultados semi-satisfatórios. Será sempre a fricção, as particularidades do contexto local, a definir os vencedores e os perdedores. A chave não está em olhar para as palavras de fora e repeti-las cá dentro, mas sim em traduzi-las.

Serve tudo isto para dizer que a história do futuro de Portugal não está, nem pode ser, escrita. Discursos como o de Mortágua e Raimundo, que nos dizem que «não escolhemos os tempos em que vivemos», ou que todos os atos da esquerda são atos de «resistência», escrevem as linhas da sua própria morte. Viram de pernas para o ar o velho mote marxista de que podemos fazer a nossa própria história dentro de um determinado campo de possibilidades. Ficam sentados à beira-mar à espera de que o tsunami chegue, sem virar as costas para as possibilidades que há na terra. Anunciar a vitória do fascismo antes do tempo não só é desmotivador, como desresponsabiliza a esquerda, como se nada se pudesse fazer. Mas as fricções são múltiplas, imprevisíveis, incoerentes. Existe um projeto político a ser feito através delas. Cabe a estes partidos perceber se se querem reinventar para o executar, ou se querem ficar a ver navios até chegar a onda.

Anna Tsing, Friction: An Ethnography of Global Connection (Princeton: Princeton University Press, 2004)