Lembro-me de, no verão em que fiz 17 anos, ler e folhear a obra completa de Fernando Pessoa — uma coleção de dois volumes em papel-bíblia — depois de o meu pai me ter convencido finalmente a ler O Banqueiro Anarquista e de encontrar, como se fosse um guia, papéis a marcar as páginas. O meu pai, um preciosista que se recusa a dobrar os cantos às páginas, a sublinhar passagens e a quebrar as lombadas, pegava em tudo o que tinha à mão para marcar os seus poemas favoritos: recibos, cartões de visita, as orelhas dos maços de cigarros…
Embora a leitura seja uma atividade solitária, quem é leitor voraz e, como eu, muito menos preciosista com os livros (não só sublinho como faço anotações nas margens e dobro os cantos das páginas, para mais facilmente conseguir referenciá-las mais tarde), sabe o que estes pequenos gestos, estas constelações que nos deixam nos livros, significam. A atividade mais introspetiva e solitária transforma-se numa partilha de conhecimento, num gesto afetuoso que nos diz «é por aqui» ou «isto tocou-me».
Um «o que andas a ler?», dito a uma mesa de café numa tarde de fim-de-semana, na semana seguinte transforma-se numa troca de livros e, passados uns dias, estamos atentos a ler, não apenas o texto mas as anotações de quem nos emprestou. Neste sentido, o livro transforma-se num objeto que transporta duas mensagens: a do autor e a da pessoa que o leu antes de nós. Através destas trocas, surgem debates e novas ideias, constrói-se o livro além do livro, as passagens ganham novos significados, não apenas para nós mas coletivamente. O livro torna-se de novo numa arma, porque as ideias ganham força quando são discutidas, quando aparecem em público.
Nestes tempos de alienação e individualismo, talvez uma ferramenta de combate seja tão simples como: trocar livros com amigos.
Rita Marques: funcionária pública cansada. Mulher decidida, menos em questões existenciais. Feminista zangada.



