[UMA ETERNA PROMESSA – PARTE III]

8.8.2025
Self-Portrait in Hell, Edvard Munch (1903)
Self-Portrait in Hell, Edvard Munch (1903)

IX.

Estou encostada à mesa de bilhar, olhando através do jogo de bilhar, pensando invés como tornar esta experiência social menos dolorosa. A sala é meio decrépita e escura, com uma televisão dos anos noventa muito grossa a crepitar um jogo de um desporto que não me lembro, e alguém meteu funk a dar baixo numa coluna. Está um rapaz extremamente pedante a rir provavelmente de uma piada privada que tem com o resto dos seus colegas de Economia, com aquele riso de rico, pausado e entonado. «Ha ha ha».

Tenho um copo de plástico na mão com uma mistura de álcool e sumo rasca. Alguém foi buscar, em vários sacos de plástico, o álcool da noite, espalhado por vários sítios da sala. Dou um gole de rajada como incentivo a pôr mais, e que o álcool ultrapasse por mim a dificuldade que sinto em quebrar o gelo com alguém, com ninguém.

Eu nem sequer sou tímida, mas sinto agora algo inultrapassável. Talvez seja o meu consciente a despertar para algo que, irreversivelmente, não poderei ignorar mais. Será que os outros notam? De certeza. É por isso que me são tão indiferentes, abrasivamente indiferentes. Obviamente estou aqui sozinha – não está aqui a minha colega – e ninguém parece fazer um esforço por se importar.

Aproximo-me fisicamente do grupo dos outros estudantes de Direito e tento enfiar algumas interjeições à conversa do grupo a que não pertenço – receção morna. Estou-me a sentir mais self-conscious. Outro gole.

Estão aqui também os dois rapazes do pequeno-almoço, o outro encostado a uma parede a participar de uma conversa, e o meu do meu lado da mesa de bilhar. Olho-o de relance pelo canto do olho a ponderar a minha ligeira curiosidade – não. Não me apetece tentar alimentar a minha imaginação baseada numa tão breve interação ao pequeno-almoço. Já me conheço, são enfatuações ridículas. Ele está encostado à borda da mesa a olhar distraidamente para o jogo de bilhar, mas a participar naturalmente da conversa de grupo.

Já não me lembro particularmente do que eu disse nesse momento, mas está encostado do meu lado da mesa e olha para mim e parece que, pela primeira vez naquela noite, alguém olhou e viu-me. Nem sequer lhe foi dirigido (talvez tenha sido – quando falamos para o vazio, quem queremos que responda?), mas mesmo assim foi o suficiente para ele o tomar como algo a dois. Respondeu-me algo, e continua a olhar para mim. Também já não sei o que respondi de novo, mas pareceu suster-lhe a curiosidade. E mais uma resposta à minha, e outra minha à dele. Parece enlaçar-se aqui uma conversa.

Antes disso tinha testemunhado, lá fora na zona de fumadores, ele e o resto dos colegas da universidade privada a afirmar plenamente a sodomia da esquerda, discutindo-se então a linha certa da sociedade entre a Iniciativa Liberal e o CDS-PP, qual a mais virtuosa. Ele numa postura mais passiva a rir-se das exaltações dos seus igualmente privilegiados colegas, e eu, silenciosa, a observar. Surpreendia-me agora ser um deles, dentro de todas as pessoas, a ver-me. Mas talvez numa postura política diametralmente oposta, havia talvez o entendimento comum de ver, discernir algo.

Enlaça-se uma conversa. Ele muito moreno, com corte de cabelo grande (aquele que tem de abanar a cabeça para tirar as melenas da cara), com cruz de prata a notar-se por entre o colarinho aberto da camisa branca, calça bege, mocassins. O estereótipo tão dolorosamente beto, e no entanto, ele aceitou, mais, incentivou uma conversa entre nós; faz-me sentir diferente, habituada a ser relegada por este tipo de homens. O olhar dele fixa-me numa conversa intelectualmente estimulante. Começo a ficar zonza, começo a ter quase uma sensação de vertigens, o meu campo de visão escurece e só vê esta conversa. À medida de cada resposta minha, parecia que estava ansioso por mais, e eu dava-lhe, sem fôlego, mais e mais, um enlace, dezenas de enlaces. Universidade («que média tens?»), Saramago («não gosto muito»), regionalismo («Braga!»), atrofia inevitável do CDS («é uma pena»). De repente a minha ansiedade anterior desaparece totalmente da minha mente, sentia na flor da pele que estava a testemunhar um daqueles momentos raros em que uma conversa te engole por inteiro, todo um contexto, uma sala, um momento desaparece, e permanecem duas pessoas num espaço-tempo paralelo, a conversar como se nunca mais ninguém tivesse tido uma conversa antes na História da Humanidade, sentados num mesmo sofá onde está, na outra ponta, um par de gajos a falar de Brawl Stars.

Perdida completamente a noção do tempo, só a retomámos quando ouvimos o ruído de duas cadeiras a serem fechadas numa mesa, com o último par de colegas a sair da sala. Ele começa a coçar a cabeça e eu volto a mim e vou verificar as horas: três e meia da manhã, e estávamos sozinhos na sala que até há cinco minutos (ou horas?) estava cheia de malta a beber e a falar em altos berros. Houve ali uma troca de olhares que subentendia que ambos percebíamos o constrangimento a que nós próprios nos tínhamos levado. Tínhamos perdido

rapidamente as palavras, disfarçando mal o facto de nos ter passado o mesmo pensamento, aquele pensamento, pela cabeça. Mas eu não sabia, e queria desesperadamente saber, qual o pensamento subsequente: «constrangedor ter-me levado tanto pela conversa, com uma namorada à minha espera» ou «constrangedor porque ela não me está a dizer claramente que quer que eu o faça».

O silêncio perdura no ar, e olhamo-nos fixamente. O meu olhar crava-se no dele, exigindo uma resposta gestual. Algum movimento que traísse uma intenção. Mas não há. Ou talvez haja—um franzir ligeiro do sobrolho, quase impercetível, como se tivesse sido apanhado desprevenido por algo que não consegue processar a tempo. Um pensamento interrompido, um arrependimento imediato? Não sei, mas a sensação é insuportável. Um fio suspenso no ar, prestes a partir. Faço um movimento repentino para me desencostar da parede na qual estava a fazer força para fugir ao ambiente opressivo da sala, e escapo-me entre ele e a parede, dirigida à porta; perdem-se no vento da minha passagem «não queres ver onde estão os outro-». Não. Claro que não quero. Entro no quarto, atiro-me para a cama e adormeço, febril de novo. Não cheguei a acordar para abrir a porta à minha colega, que na manhã seguinte me iria foder a cabeça por ter tido de chatear o porteiro.

X.

No dia a seguir acordei mais doente, pedindo por favor à minha colega de quarto para me safar de mais um evento de manhã para poder ficar de cama a recuperar do que parecia uma ressaca e uma constipação igualmente tenebrosas. Acordava e adormecia, num sono intermitente de quem bebeu demais na noite anterior, os olhos ardendo.

Acordei definitivamente, tomei ibuprofeno; ligeiramente melhor, ganhei alguma coragem para me levantar da cama e ir tomar banho na casa de banho com mau isolamento, a tremer-me toda sobre a tijoleira. Arranjei-me a custo, abatida pela fadiga doente, e empurrei-me para fora da porta.

Cheguei ao local de encontro já mesmo antes do almoço, na parte externa de entrada do hotel. Ele estava a fumar, com o seu grupo, ligeiramente afastado de onde eu agora me sentava, de encontro com a minha colega, que me cumprimenta e me pergunta se estou melhor. Achei escusada a pergunta, dada a minha cara inchada de dormir e o nariz vermelho de fungar.

Ele aproxima-se sub-repticiamente de nós as duas, fazendo um esforço evidente para se imiscuir delicadamente no nosso assunto em comum, talvez a testar as águas. Eu tinha visto que ele me tinha mandado mensagem enquanto eu dormia a perguntar se não me juntava ao resto do grupo. Mas à luz do dia, parecia que a sina que eu tinha ditado antes – que as tensões românticas têm imperativamente de ser solucionadas de noite, e não de dia – estava fatalmente cumprida. De dia a conversa não tinha o mesmo charme, não fluía como na noite anterior, quando me parecia doce como vinho a escorrer pela minha garganta. Ele parecia menos natural, mais forçado a repetir a fórmula destinada a uma noite apenas. Mencionei a Princesa Diana e ele respondeu que «não lhe achava muita piada»; de dia caiu-me mal, um indício claro de que éramos perfeitamente incompatíveis, quando de noite talvez teria passado como um gracejo.

Um tesão por resolver é uma das mais cruéis possibilidades perdidas, porque sabes que quando tomas essa decisão intempestiva é definitiva. As circunstâncias que te proporcionaram uma oportunidade no imediato não são algo possíveis de repetir no futuro. Não têm amigos em comum, não há motivos para iniciar contacto. Não sabes quem é esta pessoa na vida real: a sua verdadeira personalidade, os amigos suspeitos, a namorada hipotética. Quando decidi não atuar sobre algo que queria muito, por auto-preservação de não passar má-figura perante uma possível rejeição, sabia exatamente o azedume que ia deixar para a posterioridade o facto de não ter tentado. Mas mesmo assim o fiz. E mesmo assim me aborreceu.

Sentia esse aborrecimento a acumular-me nas veias, ao presenciar em direto o espetáculo de ver o mesmo rapaz a esforçar-se para repetir algo que nunca mais ia funcionar. Aquilo estava a crescentemente incomodar-me: não por ser realmente sobre ele, mas sobre o que dizia sobre mim. E por isso não me apetecia ver o reflexo da minha cobardia noutra pessoa. Despedi-me cordialmente para ir para o meu quarto deitar-me sobre a cama, soltando um suspiro audível, uns momentos antes de ter de sair por causa do serviço de quartos. Passei esses minutos a dar scroll no Twitter, na tentativa de aplacar o vexame e preencher esse vazio com conteúdo inútil da internet.

XI.

O meu sentimento de abatimento cresceu nesse quarto de hotel e acompanhou-me no autocarro de volta ao Porto. Tal e qual a peste que cresce em ambientes nauseabundos e depois é transportada para se espalhar por outros locais, a convivência intensa e permanente com o que antes parecia o meu promissor futuro, deixou-me um travo tão amargo na boca que eu permanecia sentada nesse autocarro silencioso incapaz de me mexer, por compreender que algo se estava a despoletar na minha cabeça que eu não seria capaz de travar: não conseguiria aguentar este estilo de vida. O estilo de vida nauseante, de transformar a minha vida numa performance, de tornar a minha visão revolucionária em algo consumível, demasiado cansada para pensar seriamente em discordar publicamente de algo, a ignorar fins de semana com a minha família e amigos distanciados deste mundo, a ignorar-me a mim própria. Começar a sobreanalisar as minhas bebedeiras, por este mundo inchar tanto o ego que se passa a pensar que alguém quer saber da tua bebedeira pelo potencial de arruinar a tua carreira. Deixar de ter tempo para ser uma pessoa normal que tem tempo para desperdiçar, que tem tempo para viver o bom e o mau, que tem tempo para sofrer e vitimizar- se. Queria ser pouco moderada, que constrói poucas pontes. Queria ter a liberdade de me sentir vítima das minhas circunstâncias – e não mais uma estúpida história de superação. Percebia agora que não queria subversiva no exato montante, mas que queria ser livre para ser estranha no montante que me apetecesse; queria ser polémica, queria beijar alguém que não devia na noite e no dia a seguir falarem disso. Queria sentir-me livre nas minhas possibilidades, mesmo que elas não se chegassem a concretizar. O prazer da possibilidade esfuma-se na concretização do objeto do desejo.

O desfecho da minha tensão romântica parecia-me, de algum modo, atada com o desfecho da minha ansiedade existencial. O vexame, a humilhação, mas o igual desejo por concretizar. Uma possibilidade riscada para sempre. Essa sensação já não a conseguia descolar de mim, por mais que tentasse.

Nesse autocarro de volta, percebi enfim. Estava a condenar-me a uma prisão mental autoinfligida para a qual não tinha estofo. E, no entanto, tentei. Tentei, tentei, tentei o mais que pude, o que mais consegui. Mantive uma postura cuidadosamente equilibrada, perfeitamente aprazível. Somos uma família, marcaram-me para a vida toda, isto não é um sítio é um sentimento. A desmarcar jantares de aniversário, pouco via os meus amigos da vida real. «Onde andas? Já não te vejo ao tempo!» «Não queres marcar uma viagem de amigas?». Ataques de ansiedade recorrentes, comprimidos para dormir. Uma das vozes mais promissoras da minha geração, mulher com opiniões, thirty under thirty, tu vais longe, vim do nada, sem nome de família. Sentir-me alienada de mim própria. O preço a pagar. Uma promissora carreira.

Não o tinha em mim. O killer instinct. Sim, o killer instinct passa por saber aliares-te às pessoas certas, saber captar votos e criar uma persona de líder, mas é mais profundo que isso: é passar a vida num frete, conseguir verdadeiramente apreciar o frete. Dar dois dedos de conversa constantemente e contentares-te com isso, interromper constantemente o jantar com os teus amigos de infância para receber chamadas sobre merdas inúteis mas aparentemente urgentes, porque isso dá uma ligeira vantagem social, fazendo os teus amigos saberem que têm de lutar mais forte pela tua amizade, e que lhes estás a conceder o teu precioso tempo; estares constantemente meio presente nas tuas reuniões de família porque não param de surgir notificações do WhatsApp a discutir o novo drama que é preciso aplacar rapidamente; deixares progressivamente de ter contacto com o mundo real porque a maior parte do tempo, se não estás a trabalhar para o associativismo, estás a pensar nos problemas do cargo, rodeado das mesmas pessoas, das mesmas questões, das mesmas ambições. Eu não o tinha. Tentei o meu melhor. Rendo-me.

Nem sequer me podia orgulhar de ser uma decisão tomada por um qualquer código de conduta íntegro e inflexível. Tomei-a porque desisti de lutar contra o meu inconsciente, algo que se estava a tornar fisicamente incapacitante. Houve, no fundo, a ilusão da escolha: nunca houve outra decisão a tomar que não a tomada. Se a escolha tivesse realmente existido, poderia orgulhar-me da minha irredutibilidade como prémio de consolação. Mas não havia. «Estava à espera de que as pedras do puzzle do destino – supondo-se que haja destino, não creio que haja – se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta.»1 E no outro percurso acabei igualmente condenada à mediocridade, abafado o meu já circunstancial potencial. Não havia a escolha, apenas a rendição. Do meu assento, encostei a têmpora na janela. A minha reflexão no vidro do autocarro dissolvia-se nas visões da paisagem, árvores e penedos, numa mancha indefinida de espetros. Ego death.

Isabel Lobo nasceu em Braga em 2002. Jurista pela Universidade do Porto e Mestranda em Estudos Políticos Europeus no Colégio da Europa, interessa-se por narrativas de poder, desilusão jovem e o vazio do mérito. Escreve para dar sentido aos marcadores sociais que observa à sua volta. Fã de Beyoncé.

1 José Saramago, em entrevista à Playboy Brasil, 1995.