V.
Acordei estremunhada no dia seguinte, já com o aviso prévio de que deveríamos ser brevíssimos no nosso momento de pequeno-almoço, sob pena de chegarmos atrasados à hora marcada na agenda que rapidamente seria substituída por um atraso de meia hora e uma conversa lânguida com a minha colega de quarto, encostadas à parede do hall da entrada. Não nos podíamos dar ao luxo de não ter pressa para aparecer (ainda – privilégios de senioridade), e por isso rapidamente seguimos em sentido, da zona dos quartos para a zona de refeições.
No corredor, caímos no enlaço dos nossos colegas do jantar na noite anterior, um par de amigos com quem tínhamos trocado um número ligeiramente superior de interjeições em comparação com o resto do mesmo grupo. Tinham decidido sair do seu quarto partilhado mais cedo que o resto do seu grupo para terem tempo para aproveitarem o torpor matinal, em vez de saírem disparados da cama para uma sala de conferências. Partilhávamos da mesma doutrina, e fomos os quatro comer o pequeno-almoço.
Dividimos uma mesa, nós as duas de um lado e eles do outro, e a conversa começou a fluir bastante bem. A mesa do pequeno-almoço, em comparação com a do jantar, parecia mais honesta, não nos impondo um obstáculo tão grande de superar. Com eles mais livres dos constrangimentos de agir em grupo, criou-se uma simbiose mais instantânea a quatro.
À falta de contexto de uns e outros, inclusive eu da minha colega, recorríamos aos assuntos em comum: universidade, academia, juventude. As já demasiado analisadas comparações entre a universidade pública e privada, a rivalidade saudável para dizer quem é que o fazia melhor. A minha colega de quarto a revelar-se o interlúdio humorístico de todo aquele fim de semana, dada a quantidade de comentários inusitados («ela [a líder] precisa é de uma boa foda, tá pouco soltinha»), e em geral a forma leviana com que levava aquele fim de semana, mas parecia-me que também a vida. Os betos a serem betos, não obstante engraçados e recetivos («és tu que lhe vais resolver esse problema então?»). Não, na verdade não era bem betos a ser betos; o que ainda se sentava à minha frente, prestes a levantar-se para entregar o seu tabuleiro de refeição, suscitou-me o mais breve lampejo de interesse, no que eu achava que poderia ter sido uma risada conjunta, acompanhada de um olhar momentaneamente cúmplice, depois de ouvir outro comentário a despropósito da minha colega («só tem feio aqui, bro!»). Mas não fiz caso – não é algo que esteja ao meu alcance. Fomos agora, os quatro, a caminhar em conjunto para mais um dia de lobbying.
VI.
Tentei perceber que postura adotar para o dia, uma dúvida perpétua entre parecer interessada e natural. Sentei-me na segunda fila da frente (um indício bastante óbvio dessa atitude), e passei o resto da manhã a posar as minhas expressões faciais de concentração, impedida de o realmente fazer pela dor de cabeça entre os olhos e a fadiga por privação de sono.
As horas da manhã passavam como uma tela em branco. Seria sempre assim, numa constante permanência de esforço pela metade? Disseram-nos que era um programa exigente. Na verdade, era exigente porque nos exigia horas e horas de presença, perdidas nos tempos mortos de reunir todos, fazer pontos de situação, atrasos logísticos. Parecia quase ritualístico: não se sentia, em momento nenhum, que a exaustão e as horas perdidas de sono fossem despendidas produtivamente a realmente pensar sobre os temas a que nos tínhamos proposto ao ir àquele fim de semana. Na verdade, reside aqui o busílis da questão que me começou a atormentar precisamente naquela fase da minha vida académica e que teve como desfecho o meu distanciamento definitivo: o trabalho parecia cada vez menos sobre a substância, e mais sobre o formalismo. Há uma ilação óbvia a tirar de que quando dormes menos, menos eficiente te sentes, menos substantivo é o teu contributo. Por outro lado, quanto mais tempo te obrigam a permanecer aborrecido num foyer com salgadinhos a ouvir distraidamente o noticiário a passar em voz baixa enquanto esperas pela não-sei-quê- tertúlia, mais probabilidade existe de reconhecerem a tua cara em eventos futuros. Sentia-me um trabalhador que não foi despedido, mas não lhe atribuem trabalho, permanecendo oito horas no local de trabalho a jogar Candy Crush.
Para mim era uma frustração, mas não parecia ser um sentimento partilhado pelos restantes, contentes por se arrastarem de sala em sala sem precisarem de se esforçar ou de fazer algo. Não que eu fizesse juízo moral – vá, talvez um pouco – mas era mais porque eu estava ativamente a descurar a outra grande prioridade na minha vida para isto. Isto – algo horrivelmente pouco substancial, algo horrivelmente pouco condizente com a minha postura de vida até então.
O que se revelava na minha cabeça, nas microinterações que tinha tido até então, era que estava prestes a chegar a uma bifurcação no meu caminho pessoal: deixar de lado as pretensões académicas, alimentar o meu ego e fazer parte daquele clube exclusivo; apostar nas pretensões académicas, assumir aqueles breves meses como um acidente de percurso, ego death. Mas como era aditiva a sensação de me sentir invejada. Apesar de no fundo saber que eram decisões excludentes, ignorei essa constatação o mais tempo que pude – tudo para não desistir dessa sensação maravilhosa, o que, à altura, me parecia o início, o meio e o fim do que andava à procura desde que me sentia uma pessoa real.
VII.
Começava a já dar sinais de uma constipação tremenda, com espirros graves e persistentes. Na pausa em que saio da sala para ir à casa de banho para me assoar longamente, resta um lobby vazio e o grupo de altos dirigentes. Saio para o corredor e lá estão eles: a líder, o sucessor, o resto da matilha. Calam em uníssono as suas vozes ao ver-me passar, não fosse eu ouvir alguma informação sensível; alguns olhares minuciosos pousados em mim. Quando cruzado o olhar, meios-sorrisos somente. «Mas vão mesmo ser sempre assim?».
Não, de facto não foram sempre assim. Haveríamos de dialogar de tarde. A líder entrou na sala de conferências, pela primeira vez desde que chegamos, para nos dirigir a palavra e propor uma reflexão sobre um estudo qualquer sobre o regime jurídico do ensino superior. Foram constituídos grupos de trabalho e cada um desses haveria de apresentar as suas próprias conclusões.
Nesse interlúdio, a intervenção dela em cada mesa estaria em, cuidadosamente, rebaixar-se ao nível dos sentados e conceder-nos um breve momento de olhar fixo nos nossos, como se nos prestasse toda a atenção do mundo. Talvez o meu estado pré-febril estivesse a começar a toldar a minha perceção das coisas, mas era algo quase místico, com certeza deveria estar explicado em um qualquer livro de psicologia: o condicionamento psicológico de, num breve instante, sentires-te a pessoa mais importante da sala por adjacência de a pessoa mais importante da sala finalmente te conceder uma troca de palavras. O misticismo, com certeza, azeda um pouco quando te apercebes que era uma postura atenta, cuidadosamente trabalhada para ser captada por uma câmara, fazendo um registo fotográfico com alguma descrição sobre proximidade e auscultação. Ou seja, não propriamente um diálogo. Mas era algo, com certeza. Só não sabia bem o quê.
VIII.
É facto assente que o clímax destas ocasiões é na última noite dos eventos. Não será preciso descrever muito o porquê. Na iminência de terminarem as circunstâncias propícias criadas ao longo de alguns dias, a exigência temporal de no dia a seguir fazer malas e cada um retomar a sua vida normal, impõe a urgência de fazer algo sobre alguém por quem se alimenta uma enfatuação ridícula baseada em nenhum fundo de verdade, incentivado por poucas ou nenhumas consequências – na marcha inexorável do tempo, amanhã este momento no tempo estará terminado para sempre, circunstâncias que não se voltarão a repetir.
Estávamos perante esse exato momento, arrastando-se o seu começo por ainda mais uma tertúlia noturna de alumni da associação. Ouviam-se já alguns suspiros em surdina, naquela pressa de arrumar em definitivo com a postura institucional e passar finalmente para o reduto do que humano ainda tínhamos. Dada finalmente por terminada, pareceu o momento do libertar das águas de uma barragem, quando ela e o resto do mesmo grupo de altíssimos dirigentes («mas eles têm exatamente a mesma idade que nós…») nos deram finalmente o aval que tínhamos o resto da noite para confraternizar na zona de convívio reservada do hotel. Eles não se iriam misturar, como é óbvio.
Quase em sofreguidão, os participantes apressam-se para os quartos, com aquele burburinho meio histérico de quem sente que algo iminente está prestes a acontecer. Vou agora de braço dado com a minha colega tornada amiga (só que não, mas setenta e duas horas em convivência constante com alguém cria-te rapidamente a ilusão vã que sim – ou pelo menos precisas de nisso acreditar, para não te sentires plena e completamente sozinho) pelo corredor alcatifado, de retorno ao quarto. Abro a porta do nosso quarto partilhado e ponho o meu telemóvel a dar alguma música em surdina, e viro-me para abrir as portas do armário, encarando de frente as minhas opções de vestuário e de costas para a minha colega de quarto, que se atirou estafada para cima da cama.
– Se calhar vou trocar de roupa, pelo menos tenho de dar um tchanan a isto ou então mais vale assumir derrota completa. Mas também não vou toda produzida senão até pareço ridícu… estás-me a ouvir?
À falta de resposta, torno-me de novo. A minha colega de quarto está deitada na cama de barriga para cima, a sorrir para o telemóvel e a responder-me distraidamente com um «hum hum». Com o cabide vazio de ter tirado a camisa que iria vestir mais tarde, uso-o para gesticular em direção à minha colega de quarto. Ainda com um breve compasso de espera, quando finalmente descola os olhos do ecrã para mim, avisa-me descontraidamente e com um sorriso estúpido estampado na cara:
– Olha, vou me encontrar com uma pessoa fora do hotel, está à minha espera. Não vou dormir contigo, mas por favor não digas a ninguém que saí. Ok?
Mal tenho tempo de formular choque («Claramente sou eu o problema? Esta miúda arranjou assim naturalmente uma foda num sítio praticamente desabitado, e eu a refletir profundamente na minha ansiedade existencialista. Eu devia desproblematizar assim. E também pinar mais vezes.»), já a vejo rapidamente levantar-se e a arrumar as coisas para meter no seu saco, dando uma passada rápida para se ver no espelho da casa de banho. Antes que eu pudesse inquiri-la, virou-me costas e esgueirou-se agilmente para a porta. «Vê se te divertes tu também!», dizia-me já com um pé fora e outro dentro do quarto, lançando-me um beijo e com um sorriso já muito mal disfarçado de quem já conhece o desfecho da sua noite. A última coisa que lhe vejo é a sua cascata de caracóis loiros a esvoaçar pela saída.
Dei parte fraca ao achar que iria conseguir depender da única pessoa que conheço aqui para me fazer companhia na parte mais ansiogénica da noite. Mas, francamente, há algo de admirável na sua determinação. Um lugar absolutamente inóspito com um desconhecido, num carro com janelas embaciadas, estacionado no meio da neblina da serra. O silêncio que faz muito barulho, vindo das profundezas da noite. Tenho de lhe dar esse crédito.
Mas agora eu. A posição que eu mais temia, a situação mais desconfortável: instigar conversa com pessoas sobre as quais já tinha preconceito, sozinha. Eu já me sentia melhor que todos por me sentir num nível superior de discernimento, por notar tão distintamente a farsa em que eles, em que nós nos encontrávamos. Já me sentia sozinha emocionalmente, claro; mas agora fisicamente; parecia já a concretização do meu claro desconforto mental, traduzido para todos verem e definitivamente me rejeitarem como uma miúda estranha. No fundo, não é esta a ansiedade de toda a gente? Ser estranho?
Isabel Lobo nasceu em Braga em 2002. Jurista pela Universidade do Porto e Mestranda em Estudos Políticos Europeus no Colégio da Europa, interessa-se por narrativas de poder, desilusão jovem e o vazio do mérito. Escreve para dar sentido aos marcadores sociais que observa à sua volta. Fã de Beyoncé.