[UM DIA EM SAGRES: TURISMO E IMPÉRIO]

28.8.2025
Bert Christiaens: Aerial View of Fortaleza De Sagres Sea Port
Bert Christiaens: Aerial View of Fortaleza De Sagres Sea Port

Num dia particularmente ventoso – até para os padrões desta terra – decidi fugir da praia e dar uma volta pela vila de Sagres. Na larga maioria dos 26 verões que aqui passei (só falhei um desde que nasci), não pensei muito na história deste lugar. Nascido em Belém, passei a minha vida entre dois dos principais portos da expansão marítima portuguesa. Cresci entre as várias estátuas do Infante D. Henrique, as inúmeras fortalezas, o mesmo mar. Na escola, li Pessoa, li Camões, li esses e tantos outros que falavam da grande epopeia dos descobrimentos, dos grandes feitos dos portugueses, do grande espírito aventureiro que nos molda a alma, dessa grande sorte que é nascer neste pedaço de terra, que é ver o grande Rio Tejo e o grande Oceano Atlântico em Belém e em Sagres, de onde saíram os grandes barcos. Na altura, devo ter pensado: que grande chatice.

Mas, agora, imbuído de uma leve consciência histórica e da impossibilidade de ir apanhar sol, decidi ir visitar um destes locais de culto da portugalidade sobre os quais aprendemos nas salas de aula: a Ponta de Sagres, também conhecida como «Promontório de Sagres»1, onde está a famosa Fortaleza. Ao chegar, depois de um passeio de trinta minutos contra o vento, deparei-me com uma primeira surpresa: estava cheio de pessoas. Portugueses, italianos, espanhóis, ingleses por todo o lado. A fila alongava-se por vários metros. Esperava eu encontrar um monumento deserto, viver uma experiência solitária na velha fortaleza, repleta de dramáticas reflexões, e eis que me deparo com um mar de turistas. Se o Infante visse esta invasão estrangeira, dava-lhe um ataque cardíaco, penso. Olho para o cartaz da entrada: A Europa começa aqui!

A Europa começa aqui. Fico a pensar na frase. O seu intuito é geográfico, suponho. É aqui o «ponto de entrada» no continente, o seu local mais ocidental. Visto a partir do nosso umbigo, claro – alguém que veja a Europa a partir dos Montes Urais, na Rússia, vai dizer precisamente o contrário. Mas a frase faz mais sentido se pensarmos nela a nível ideológico. A Europa começa aqui, porque foi daqui, dos portos desta região, que se marcou o arranque da expansão marítima, da colonização de ilhas atlânticas e portos africanos (e, mais tarde, de outros continentes), da criação de territórios ultramarinos com fins extrativos para a metrópole, da edificação de plantações para extrair as matérias-primas, do ensaio de novas formas de exploração de humanos através da escravatura transatlântica. A «Europa» enquanto criadora de um modelo económico de exploração de terras e corpos – o capitalismo, ensaiado e reinventado ao longo de séculos até à atualidade – começou, de facto, aqui. Mas acho que o cartaz não está a falar disso.

Avancemos. Ainda não tinha visitado o «Centro Expositivo da Fortaleza de Sagres», inaugurado em 2022 num dos vários edifícios do Promontório. Como explica o website oficial, esta exposição «oferece aos visitantes uma experiência estimulante e interativa sobre a relevância do Promontório de Sagres para a história da Humanidade», incluindo um «questionamento e reflexão crítica sobre o valor singular deste território, desde a Antiguidade até aos nossos dias.» Grandes expetativas! Encafuado entre turistas saídos da praia, lá me meti dentro do Centro Expositivo, pronto para esta viagem desde a Antiguidade aos dias de hoje com o cheiro de água do mar e suor no ar.

A exposição é pequena, composta por seis salas. A museografia é impecável. A exposição é interativa, os textos são curtos e não são demasiado densos, há várias imagens de figuras históricas, mapas, objetos que tornam a história mais «viva» ao visitante, filmes que permitem engajar com o conteúdo de formas diferentes. Fiquei surpreendido pela positiva com a «forma» – é um ótimo exemplo de como fazer uma exposição sobre um tema «académico» (ou, mais coloquialmente, chato) para um público abrangente.

O seu conteúdo é, contudo, desapontante.

As seis salas seguem a seguinte ordem: primeiro, uma sala sobre a história deste «Promontorium Sacrum», explicando como foi um local de culto para várias culturas que por aqui passaram ao longo dos milénios: ocupações megalíticas, romanos, muçulmanos, cristãos. Depois, referem a descoberta dos restos mortais de São Vicente, mandados trazer para Lisboa por D. Afonso Henriques – «um momento fundamental na consolidação da unidade nacional entre cristãos moçárabes e cristãos vindos do Norte», explica o breve parágrafo inscrito na parede. Assim, nesta primeira sala, ficaram arrumados todos os anos entre o megalítico e a fundação de Portugal – mais ou menos 6000 anos. Os seis painéis que seguem focam-se na expansão marítima portuguesa nos séculos XV e XVI: 200 anos, mais coisa, menos coisa. 

Assim, despachada a Antiguidade, abrimos portas aos Descobrimentos. A segunda sala versa sobre a vida do Infante D. Henrique, com alguns dados biográficos que podem ser visitados num qualquer livro de História, seguindo-se a terceira sala, sobre instrumentos náuticos e as viagens de Vasco da Gama e Fernão de Magalhães pelo globo. A seguir, uma quarta sala foca-se nos navios da expansão portuguesa, incluindo um interessante quadro interativo que explica a vida quotidiana destes navios, referindo brevemente os indígenas que foram escravizados para serem tradutores dos portugueses, e sem mencionar os africanos que eram levados forçadamente nos porões de inúmeros navios da época. Segue-se uma quarta sala sobre como os portugueses protagonizaram a «primeira globalização» através da criação de um «mundo de trocas» (referindo, na legenda de uma figura de um africano de mãos presas, que «os escravos eram trocados por ouro», como se fossem, também eles, mercadoria). A sala é ilustrada por inúmeras imagens de especiarias, dando a entender que a expansão marítima foi uma tranquila troca de condimentos para a comida em alto mar. Eis que, do outro lado da mesma sala, se demonstram «as rotas da escravatura», referindo o relato que Gomes Eanes de Zurara fez das pessoas escravizadas que chegavam a Lagos, e da descoberta de ossadas em Lagos, em 2021. Ao lado, um breve texto sobre a «Evangelização e encontro de culturas», sem referências à violência destes processos (fala-se, eufemisticamente, numa «conversão dos povos» e em «estabelecer o conhecimento e a gramática das suas línguas»). No fundo, entre a segunda e a quinta salas, recicla-se a mitologia dos descobrimentos como a aprendemos nos nossos desadequados manuais escolares. Nada de novo – a exposição é de 2022, mas podia ser de 1970. 

Chegamos, finalmente, à última sala: «A Língua Portuguesa». O português tornou-se uma língua global falada em todos os continentes. Mais uma vez, não se refere a violência subjacente à imposição de uma língua num território. Fala-se tranquilamente na «prática secular de miscigenação étnica» (!?). Ao lado, encontramos um conjunto de pequenos ecrãs, cada um com uma pessoa falante da língua portuguesa, vinda de cada canto do globo. Uma imagem de união e fraternidade. Império e amor! À frente, podemos assistir à projeção de um filme que, com uma música dramática no fundo, revela as figuras de Bartolomeu Dias, do Infante, e de todos os restantes bandidos, como se a expansão fosse um filme de ação. Só falta mais uma coisa para o final perfeito. Ao caminhar pelo corredor que (finalmente) me leva à saída, leio: Assim fomos abrindo aqueles mares / Que geração alguma não abriu / As novas ilhas vendo e os novos ares / Que o generoso Henrique descobriu. Camões, cereja no topo do bolo, a falar do generoso Henrique – que, com a pipa de massa que fez, de generoso tinha pouco. Descobriu, sim, uma bela forma de enriquecer.

O que dizer sobre este Centro Expositivo? Senti-me enganado, claro. Venderam-me uma história sobre este território «desde a Antiguidade até à atualidade», e apresentam-me uma sala que resume seis mil anos em dois parágrafos e cinco salas que reciclam a mitologia da epopeia dos descobrimentos no século XV. O que fica de fora? Quase tudo. A título de exemplo, ficam alguns eventos não abordados: o ataque da frota de Sir Francis Drake a Sagres no século XVI, ou as batalhas com piratas do Norte de África e corsários franceses na mesma época; o impacto de terramotos e tsunamis na região, nomeadamente o de 1755, que teve o seu epicentro nesta região; a renovação daquele espaço nos séculos XVIII e XIX, com intervenções pombalinas seguidas da reconstrução de vários edifícios; as histórias dos pescadores que sempre viveram e fizeram esta região; o crescimento desenfreado de infraestruturas turísticas, em particular desde os anos 90. Podia continuar.

Para uma exposição que se propõe a fazer um «questionamento e reflexão crítica sobre o valor singular deste território, desde a Antiguidade até aos nossos dias», o objetivo foi, claramente, falhado. Em vez disto, vendem-nos a velha lengalenga dos descobrimentos, enfiam-nos a mitologia estado novista pela goela abaixo, contam-nos de novo a romantizada história da epopeia do Infante e dos seus comparsas, sem sequer referir, como de costume, as histórias dos povos que foram afetados pelos seus desejos de riqueza e poder. Resumem a história de Sagres a um curto período histórico, de menos de 200 anos, dando a entender que quase nada de relevante aconteceu antes e depois de o Infante pisar este solo. Trata-se de uma – mais uma – oportunidade perdida para apresentar uma história completa e diversa desta terra.

Desiludido, dirigi-me à loja, onde, entre dezenas de biografias do Infante, Vasco da Gama e Fernão Magalhães, me deparo com um jogo de tabuleiro: Quinto Império. Leio a descrição: Depois de longos anos a navegar por mares revoltos e desconhecidos, regressaste ao reino carregado de glória. Das terras distantes que visitaste, contaste histórias de culturas que conheceste e riquezas que observaste. Poucos dias passaram desde este teu regresso e já el-rei te incumbiu outra missão! A bordo de uma caravela, o objetivo do jogo é conquistar todo o mundo. Uma bela propaganda para toda a família! Ao lado, observo vários guias turísticos para a região à venda. Visit Algarve. Distraído, sou abalroado por um senhor espanhol que quer comprar um azulejo com o desenho de uma caravela para enfeitar a sua cozinha. Turismo e Império. A Europa começa aqui!