A «derrota» do Chega
Para quem muito esperava uma vitória estrondosa do partido populista, enganou-se. Mas também se enganam todos os que julgam que este resultado é uma derrota para o partido de André Ventura. O Chega tornou-se imprescindível em muitas assembleias municipais, conquistou três câmaras e, talvez o mais importante, conseguiu impor a sua agenda política em muitas das campanhas. É certo que o PSD se pode vangloriar de ter esvaziado muito do ímpeto do Chega com um certo abraço a medidas mais restritivas da imigração, ou o PS por ver a liderança de Ricardo Leão reforçada depois do caso da demolição do Talude. Porém, o que estas vitórias de curtíssimo prazo escondem é uma erosão profunda nos valores dos partidos fundadores da democracia. Há um abandono total das bandeiras doutrinárias que marcavam a diferença entre o PS e o PSD e que lhes permitia a construção de projectos políticos alternativos entre si, com uma base filosófica e ideológica distinta. Hoje, o PS e o PSD estão completamente alinhados na ideia de que, para esvaziar o Chega, devemos ser ainda mais populistas, abandonando de vez a ideia de que a democracia se rege por valores próprios e definidos. Ambos se renderam à ideia oca de que a demagogia é o caminho certo para resolver os problemas que eles próprios criaram por se recusarem a pensar diferente dos neoliberais europeus. Fazia-lhes bem ler um pouco de História.
O bipartidarismo acabou mesmo
É um tudo-nada confrangedor ver tantos democratas e políticos do centro inflarem as suas bandeiras com os resultados autárquicos. Esquecem que a política local segue uma ordem e prioridades diferentes da política nacional, muito mais pessoais do que partidárias. No essencial, a vinda do Chega veio substituir o voto de protesto que dantes era colhido pela CDU e pelo Bloco. Não se trata de o país virar à direita, de existir uma «maioria sociológica de direita» (sabemos lá o que isso quer dizer), mas sim de o Chega fingir representar a classe trabalhadora, pobre, excluída, afastada dos círculos de poder, dos privilégios urbano-burgueses e da mundivisão que é partilhada entre meios progressistas. Se muitos dos votos no Chega têm uma cor reaccionária, os votos que efetivamente levam o partido para o arco da governação são os mesmos votos de quem respeitava a seriedade e compromisso do PCP e quem simpatizava com a posição anti-sistema do Bloco. Desaparecidos esses papéis – uns por terem optado pelo caminho das lutas culturais, outros por terem cometido erros históricos no apoio ao PS e na incapacidade para se repensarem ideologicamente –, o Chega vem oferecer falsas promessas a todos aqueles que estão mais preocupados com o seu salário mínimo e com a greve do autocarro que têm de apanhar às cinco da manhã do que com os comportamentos desviantes dos deputados do Chega. Sim, mandar beijinhos a uma deputada é inqualificável e uma suspensão do mandato não me pareceria exagerada. Mas para quem é pobre, para quem o pós-modernismo é um conceito distante da vida quotidiana, para quem a preocupação maior é sobreviver no sufoco do capitalismo tardio, o que conta são os dez anos de laissez-faire socialista, apoiado pela esquerda, e que abriu as portas ao turismo desenfreado, à especulação da renda fundiária, à imigração para trabalho desqualificado e mal-pago. O PS só se pode culpar a si próprio pelo seu afastamento do mundo do trabalho, pela inexistente vontade em resolver os problemas da vida das pessoas e oferecer um elevador social pujante. Perante este cenário, e com a social-democracia e o neoliberalismo transformados em Dupont e Dupont, não há vislumbre de diferenças substanciais, além de algumas bandeiras simbólicas, entre o PS e o PSD. Ambos representam o mesmo poder viciado, a mesma visão oca da economia de mercado, os mesmos clichés eurocratas, a mesma indiferença face às dificuldades das pessoas. Laranja e rosa são, cada vez mais, tonalidades diferentes de uma mesma cor.
A política dos afectos veio para ficar
Sem projectos alternativos com políticas concretas, marcadamente ideológicas, resta às pessoas votarem em quem mais gostam. Seja Menezes em Gaia, Isaltino em Oeiras, Meira em Setúbal ou Pedro Duarte no Porto. Ninguém pode falar de visões diferentes, projectos contrastantes ou ideias distintas. Fukuyama venceu e venceu bem. De tal forma que, na noite eleitoral, as discussões centraram-se no concurso de popularidade, nos sentimentos que os eleitores têm pelos candidatos e nunca sequer se ouviu uma explicação política para as vitórias. Vivemos num mundo tecnocrata onde a única fatia que o capitalismo delega para a humanidade se resume aos abraços e beijinhos em campanha. Nada disto é novo, o que é novo é a aceitação em surdina que todos os actores da bolha político-mediática fazem deste status quo. O efeito de espelho aumenta esta percepção e anula qualquer discussão que traga para cima da mesa o choque entre propostas, a velha política de combate entre visões e projectos para o país. Afinal, o Presidente Marcelo revelou-se um visionário.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.
Ricardo N. Henriques é professor de Filosofia no ensino secundário, doutorado no ramo de História da Filosofia, pela Universidade Nova de Lisboa. Gosta de cinema, futebol e política.

![[O REAL EM SEGUNDA MÃO]](https://cdn.prod.website-files.com/6783a91157c5ce7778d0ca56/68f6d3205c743ff5afbeca89_IMG_1095.jpg)
