[TEMPO DOS MONSTROS]

24.5.2025
Estudantes olhar para mural de António Gramsci em Orgosolo, Itália, em 1975.
Estudantes olhar para mural de António Gramsci em Orgosolo, Itália, em 1975.

Bem sei que incorro no estereótipo humorístico aplicado aos gramscianos que acham que tudo tem sempre que ver com hegemonia. Mas não é que ele tinha mesmo razão? A derrota da esquerda e o assalto da extrema-direita apanhou-nos com tal surpresa que ainda nos sentimos – assumo um plural que pode não se aplicar a todos os leitores, mas talvez se aplique a muitos – congelados, incapazes de responder a certas perguntas que ecoam sem parar nas nossas cabeças e, sobretudo, com dificuldade em enxotar o viscoso sentimento de desolação, desespero, desesperança. 

Sento-me para escrever este texto ainda desorientada, com dificuldade em encontrar o balanço que me permitirá levantar e retomar o crescentemente ingrato caminho do otimismo revolucionário. «O Gramsci é que tinha razão», dizia-me o meu pai ao telefone depois das eleições. Tenho de escrever algumas palavras sobre isso, penso. Aqui ficam essas palavras, escritas ainda na tristeza à qual até o mais ortodoxo e crente comunista não consegue escapar num momento assim.

Voltas e voltas que se possam dar, mas uma conclusão é  incontornável: perdemos formidavelmente o combate pela hegemonia. Perdemo-lo face ao avanço das ideias neoliberais e atomizantes, do «cada um por si próprio», do sucesso e fracasso individual, dos empreendedores de si mesmos. Agora, assistimos à erosão do pouco que ainda existia de um consenso antifascista, de ideias de democracia ou de um consenso vagamente liberal que captava ideias básicas do feminismo ou do antirracismo. A hegemonia em torno de ideias de solidariedade coletiva, de juízo moral sobre o capitalismo, de uma sociedade socialista e das pessoas comuns ficou perdida lá atrás, derrotada pelo neoliberalismo, pela queda do socialismo real a Leste, pelo renovado avanço da extrema-direita. Numa carta que escreveu à sua mãe pouco depois de ser preso, Gramsci descreveu os tempos em que viviam como «tempos de ferro e fogo». Sem dúvida que o foram. Os que nos calharam também o parecem ser. Calhou-nos o inefável trabalho da contra-hegemonia. 

Olhemos para a ideia de hegemonia. Podemos falar da hegemonia gramsciana como a organização do consenso, a complexa dialética entre consenso e coerção (Gramsci não cria uma distinção rígida entre sociedade política e civil) que mantém uma ordem vigente. Podemos pensar na hegemonia como uma direção cultural e moral da sociedade e do Estado. No fundo, penso que será interessante encarar a ideia gramsciana de «hegemonia» como um problema, como uma questão que percorre toda a sua obra: como é que as relações de poder são produzidas e reproduzidas na sociedade? Para Gramsci, a hegemonia construir-se-ia a partir do senso comum de um grupo social. No entanto, naturalmente, não se limita a este. Mas esta ideia é muito relevante. Dirigir não significa, portanto, apenas impôr-se a grupos sociais passivos, mas incorporando os seus sentimentos em relatos que se hegemonizam. A produção do consenso é, fundamentalmente, a luta pela hegemonia. O consenso, por sua vez, legitima a coerção aos olhos dos dominados. Olhando para estas ideias, facilmente chegamos à conclusão de que o senso comum nos foi escapando amargamente por entre os dedos das mãos. O ódio ao migrante do sul da Ásia, a raiva contra quem vive com ajudas do Estado Social, a glorificação do self-made man que conduz grandes carros e explica como se conquistam mulheres, o revanchismo da cultura machista e da violação tornaram-se senso comum. Seguindo ideias de Raymond Williams, mais do que só ideias concretizadas, tornaram-se em fortes estruturas de sentimentos que mobilizam não só o «saber» de uma certa ideia, mas o senti-la. 

Fará, então, sentido falarmos sobre guerra de movimento e guerra de posições, termos fundamentais para compreender as táticas de tomada de poder pela uma perspetiva gramsciana. Como tudo, o desenvolvimento desta teoria está relacionado com as condições da vida do próprio Gramsci. Depois da sua prisão pelas mãos do fascismo, o pensador começou a considerar que a dicotomia fascismo ou relação proletária seria irrealista. Passando assim a considerar que o combate ao fascismo se faria através de uma guerra de posições, onde se procuram aliados sob bandeiras democráticas e se forjam novas alianças de classe. De acordo com Gramsci, a guerra de movimentos seria uma forma de tomada do poder, associada à rapidez e à força, presente, por exemplo, na Revolução Russa. Para ele, as sociedades com superestruturas menos desenvolvidas, ou com uma sociedade civil menos forte, seriam um palco mais fácil para esta tomada do poder através dos «movimentos». Já a guerra de posições, mais adequada a países com sociedades civis mais desenvolvidas e com aparelhos hegemónicos mais sólidos, implica que os socialistas se entrincheirem em posições que são caracterizadas por um avanço mais lento e procurem constituir-se lentamente como força cultural capaz de disputar a hegemonia da classe dominante. Mais do que em qualquer momento (pelo menos destes modestos vinte e cinco anos que vivi), encontramo-nos entrincheirados na lenta guerra de posições. Importa-nos agora fazer esse trabalho dedicado da contra-hegemonia militante e esperançosa. 

Para mim, ler Gramsci é igualmente perceber que a construção de um mundo diferente é trabalhosa, incerta e pautada por amargas derrotas e recuos, mas que esses não nos devem mergulhar em estados de espírito banais de desespero ou desilusão. Vivemos tempos de crises económicas, de ideias postas em causas, que consensos que se quebram e de novas forças reacionárias e de cariz fascista a surgir. Conhecemos e reconhecemos a atualidade de uma das frases mais conhecidas de Gramsci: O mundo velho está a morrer, o novo ainda não nasceu. Este é o tempo dos monstros. O doloroso parto de um novo mundo é uma tarefa militante, de disputa cultural de ideias da maioria e, muitas vezes, de persistente resistência aos regimes mais adversos. É também a tarefa pela procura de novas linguagens e sínteses culturais que permitam somar sentimentos já existentes com a imaginação para criar novos mundos. 

Vivemos no momento histórico em que desesperadamente precisamos dessas novas sínteses culturais, de as encontrar coletiva e criativamente num novo impulso de uma esquerda que se possa saber humilde nas derrotas e disposta a aprender. Que dispute eficazmente o senso comum e que trave a guerra da hegemonia. Não foram as pessoas que falharam, não foram as pessoas que não perceberam o que tínhamos para dizer. Saibamos estar ao nível da tarefa intelectual com a qual nos confrontamos. 

Outro dilema surge-nos perante os nossos olhos. Ouvimos a extrema-direita arrogar-se do «antissistema». Sabemos, é certo, que são os filhos e defensores dos grandes grupos económicos, da direita amargurada e sedenta de vingança ao longo de cinquenta anos e os porta-vozes do ódio que pretendem sempre, sob subterfúgios de culpabilização coletiva que se vão mutando mediante o momento histórico e o contexto nacional, que os mais pobres o continuem a ser. Somos postos no papel ingrato de defender a Constituição que ainda existe, apesar das ferozes machadadas que foi levando pela mão do PS e PSD ao longo das últimas décadas. Defendemos amarguradamente um regime democrático cada vez mais distante do sonho já cinquentenário. Talvez seja hora de superar ideologicamente o apego absoluto à nostalgia de Abril (recomendando aqui a leitura da primeira longa do António Amaral aqui, no Desatempo) e abrir novas avenidas, ainda mais radicalizadas e irreverentes, que nos permitam uma disputa mais eficaz da hegemonia. Se eles voltarem a alterar a Constituição. Se o direito à greve, ao despedimento por justa causa ou à autodeterminação de género desaparecerem, ela perde o pouco que ainda tinha de nós.

Ao mesmo tempo, esbarramos com o fracasso da memória. Enzo Traverso avisou-nos. Poderemos argumentar, de acordo com o autor, que o boom de memória do Holocausto no fim do século passado, ao invés de reforçar narrativas antifascistas e críticas, criou um novo núcleo de cultura internacional de vitimização, passando de narrativas de luta para narrativas de trauma e sofrimento apolítico. O historiador aprofundou este argumento ao afirmar que o Holocausto se tornou um argumento apologético para as ações e intervenções militares das democracias liberais ocidentais no presente. A memória foi neutralizada e embalsamada para lhe retirar o seu potencial crítico. Por isso, aqui chegamos. De pouco nos serve mostrar fotografias de prisioneiros de campos de concentração, de dar a conhecer relatos de presos políticos torturados pelo fascismo, de contar até a história brutal do fascista croata Ante Pavelic que guardava olhos removidos a prisioneiros sérvios. Neutralizaram a memória que poderia servir de caixa de ferramentas criativa para responder à violência e a estagnação do presente, destruíram vidas, trabalhos, laços sociais e empurram-nos para crises e crises. Depois voltaram a dizer que a culpa é do outro.

Uma nota final.  A escrita de Gramsci é também aquela que procura acordar. É desta ideia que vem também o seu ódio à indiferença, à apatia e àqueles que deixam cair na fatalidade. Gramsci dizia que lhe causavam «tédio as lamúrias dos eternos inocentes». Ler Gramsci é ser chamado à ação. Para Gramsci, os militantes comunistas deveriam carregar em si uma vontade política que acredita na possibilidade de vitória. Isto não significa uma ideia de auto-ajuda bacoca. Pelo contrário, é a ideia de que, face às contingências e dificuldades de um dado período histórico que deveriam ser conhecidas e compreendidas por esse militante, se deveria manter uma vontade insistente e incansável na luta política. Uma espécie de otimismo disciplinado e auto-organizado, uma não desistência reiterada. O trabalho da transformação radical de uma sociedade exige esse domínio e conhecimento sobre si próprio, essa vontade trabalhada e que não se deixa desesperar. 

Todos nós nos perguntamos sobre propósito, sobre o que, afinal fazemos aqui. Evidentemente, não tenho uma resposta para isso. Até porque, inspirada por um certo existencialismo sartriano, tendo a achar que somos muito mais livres do que julgamos, condenados a escolher que propósito lhe queremos dar. Somos constrangidos pelas condições do nosso nascimento, mas, ainda assim, fazemos a nossa História. Não há aqui nem Deus nem destino. Neste mundo, faremos sempre alguma coisa e o que quer que façamos será sempre uma escolha, mesmo que a escolher seja não fazer nada. Por isso, estamos condenados a escolher. Vamos escolher. Isso é uma certeza. Porque somos radicalmente livres, somos absolutamente responsáveis pela essência que criamos. Criamo-nos a nós próprios num processo dialético de contribuição para a Humanidade. É por isso que sentimos angústia. Esta angústia é o preço que pagamos por estarmos ligados ao mundo, pela empatia, o conhecimento, a recusa da indiferença. Se reconhecermos e aceitarmos a responsabilidade de sermos uma pessoa completa, seremos perseguidos pela ansiedade, pela angústia, pelo desespero. Alguns tentarão sempre fugir. Farão tudo o que puderem para se livrarem da responsabilidade estrutural que carregamos de transformar o mundo em que nos encontramos brevemente. Nós não somos dos que se retiram. Como as personagens de A Condição Humana de André Malraux, somos confrontados com a responsabilidade, por vezes absurda, de escolher aquilo pelo qual queremos morrer e também pelo qual queremos viver. Odeio os – e as – indiferentes porque escolhem tapar os olhos. Este tempo pode ser o dos monstros, mas é também o nosso.

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