[RESSENTIMENTO COMO ARMA POLÍTICA: UM OLHAR OPTIMISTA]

14.7.2025
Prise de la Bastille, 14 juillet 1789, artista desconhecido
Prise de la Bastille, 14 juillet 1789, artista desconhecido

Muitos de nós se assustaram com o resultado das eleições legislativas de 18 de Maio. Foram vários os motivos para o susto: a queda do Bloco de Esquerda para valores microscópicos, a fraca resistência do PCP, o vendaval que levou do PS 400 mil votos. Mas nada fez tremer mais os corações dos democratas do que a subida do Chega a segundo partido com mais deputados. A perspectiva de uma maioria de dois terços da direita no Parlamento imediatamente traz consigo os receios de uma revisão constitucional que tenha os direitos dos trabalhadores e das minorias como alvo. A Iniciativa Liberal apressou-se a querer sair da irrelevância dos seus resultados eleitorais e procurou liderar o debate pressionando Montenegro, pondo-se em bicos de pés para tentar arregimentar as tropas. Talvez a derrota nessa pequena batalha tenha sido demasiado dolorosa para Rui Rocha, precipitando a sua saída pela porta pequena. Porém, independentemente desse balde de água fria nas aspirações da IL, o aumento dos deputados do Chega significou para muitos uma derrota dos «valores de Abril»,um «perigo para a democracia», um retrocesso. Mas será mesmo essa a única leitura possível? Será correcto pensar que o país inteiro se converteu ao «fascismo»?

Quando, na crise das dívidas soberanas em 2010, a Esquerda se apresentava como violentamente crítica da política neoliberal de austeridade levada a cabo pelas instituições europeias, os seus alvos eram os partidos do centro-esquerda e centro-direita que, desde 1992 com o Tratado de Maastricht, foram aceitando as políticas de liberalização do mercado comum europeu. Foram estas medidas que permitiram a financeirização da economia europeia, entre elas a proibição dos Estados se financiarem directamente a partir do Banco Central ou a abertura das portas à fusão da actividade de bancos de investimento e comerciais, permitindo aos bancos jogar na bolsa com o dinheiro dos depositantes (levando às consequências desastrosas que todos conhecemos). Estas políticas levaram a uma crescente desregulação das economias europeias, uma vez que enquanto se criava um mercado europeu, não se criava de igual forma uma política fiscal comum nem um Governo europeu eleito pelos cidadãos, com políticas iguais para todos os Estados membros. A fuga de capitais estava só a começar. Enquanto se alimentava a ideia de uma economia de cooperação entre Estados, retirava-se-lhes o poder para poderem definir as políticas industriais necessárias para os seus países , ficando cada vez mais dependentes das orientações centrais do eixo franco-alemão, e todos dependentes da banca. Países periféricos, como Portugal e Grécia, foram dos que mais sofreram, como é bem sabido. A incompetência, a corrupção e a ganância permitiram que Estados abdicassem da sua política económica e industrial a troco de grandes quantias que foram, sem grande surpresa, mal investidas, mal geridas, mal aplicadas, resultando em economias deficientes, com vícios incorrigíveis e assimetrias catastróficas para o pleno exercício da democracia. Esta submissão à inquebrantável evolução do mercado, este ajoelhar dos sociais-democratas aos dogmas neoclássicos da economia liberal, levou a uma crescente descredibilização dos projectos sociais europeus, da política de coesão europeia, dos programas de alargamento e integração, uma vez que, com o passar dos anos, estes degeneraram para uma perda de soberania cada vez maior dos Estados-Nação, um enfraquecimento sucessivo dos mecanismos de regulação da banca nacional, um desmantelamento do Estado Social (a começar pela vitoria ideológica de transformar as políticas públicas em questões  técnicas, esvaziadas de sentido político). Merkel e Disselbloejm fizeram tudo para alimentar a tensão entre povos do Sul(malfeitores) e povos do Norte (bem-comportados). Num discurso profundamente racista, a Europa fez questão de humilhar todos os que não alinhavam na sua visão radical e austeritária. No seu livro de memórias em que descreve as aventuras como antigo ministro das finanças grego1, Yanis Varoufakis conta-nos a história de como Wolfgang Schauble reprimiu Luis de Guindos, Ministro da Economia espanhol, em plena reunião do Eurogrupo quando este se atreveu a mencionar a possibilidade de, com eleições, os Governos mudarem e, com isso, a sua política fiscal mudar. Para Schauble, esses efeitos perniciosos da democracia eram para arrasar. Depressa os socialistas perceberam a mensagem e vestiram o fato de lacaios. Em suma, foi por causa dos partidos socialistas europeus que a Europa abdicou de conciliar o crescimento económico com o desenvolvimento social e humano. Foi a desistência dos sociais-democratas de criarem uma visão da social-democracia que resistisse ao canto das sereias neoliberal que criou as condições para o descrédito na democracia liberal. Foi a recusa dos socialistas europeus em criticarem as políticas de austeridade e, pelo contrário, de serem parte dos seus acérrimos defensores, que empurrou toda a classe trabalhadora identificada com a esquerda democrática para uma orfandade partidária.Afinal, se ambos os partidos de centro defendem a mesma política anti-democrática, contra o espírito europeu do pós-guerra de cruzamento do crescimento económico com desenvolvimento social, de desmantelamento das conquistas do Estado Social e alinhadas com a elite financeira mundial, o que os distingue dos liberais? Entre cópia e original, já sabemos o que se escolhe.

Chegados a 2025, o susto ainda parece assim tão grande?

Os votos no Chega representam uma oportunidade: os eleitores estão saturados dos dogmas liberais mastigados pelo PS e PSD. As pessoas já não querem mais os representantes de um sistema que lhes promete tudo e nada muda. A desilusão com o Governo de Costa foi real: havia uma expectativa reformista, de maior investimento público, de fortalecimento do EstadoSocial. O resultado foi um Passos Coelho mais civilizado, uma Troika chamada Centeno com a fatiota das cativações. Junte-se a isto um Campeonato Europeu de Futebol e vivemos anos de ouro da civilização lusitana. A Esquerda, na ausência de um projecto próprio, agarrou-se às reversões das políticas passistas que nem a Troika defendia. Assim foi fácil: a fantasia de um Governo de esquerda era suficiente para os herdeiros de Abril enquanto uma governação neoliberal e europeísta de facto mantinha os nossos donos calmos. Costa foi mestre nesta articulação. Até ela durar. Quando a bolha rebentou, os comboios ficaram na mesma, os salários continuaram em baixo, os hospitais têm menos médicos, os serviços públicos estão piores, as rendas dispararam com a especulação e a chegada exponencial de estrangeiros não teve o mínimo acompanhamento. Destruiu-se a cidade de Lisboa em nome do turismo, a única indústria que a Europa nos concede, e assobia-se para o lado quando as pessoas falam dos problemas associados aos imigrantes que, quando não são usados como escravos modernos nas caves das lojas de conveniência, se vêem presos a infernos burocráticos verdadeiramente dantescos. Ignora-se o dinheiro que os grandes produtores agrícolas estão a fazer à custa dos trabalhadores do Sudeste Asiático, da mesma forma que se ignora como os fundos de investimento e pensões americanos são dos principais responsáveis pela subida das rendas.

Voltando ao princípio, será que devíamos ver mesmo o voto no Chega como um susto? Proponho que não, que devemos ver como um murro na mesa de quem está desesperado, de quem sofre com as greves nos transportes e não tem dinheiro para chamar um Uber, de quem não vê perspectiva de saída das suas vidas suburbanas, que não são cool nem têm clout, de quem se sente abandonado por uma esquerda pós-moderna, que trocou o trabalho pela cultura e o povo pelas redes sociais. São votos de quem se sente desencantado com um sistema, de quem já não quer mais cair nas mesmas cantigas e sente que a única solução é abanar tudo. Será este um sentimento e um pensamento a desvalorizar? Não é precisamente isto que a Esquerda sempre quis? Finalmente uma quantidade massiva de eleitores diz «não» a um sistema estagnado, preso nos dogmas neoliberais de quem vive isolado na torre de marfim, incapaz de dar conta dos desafios ambientais, sociais e políticos do nosso tempo. Finalmente, as pessoas estão capazes devotar em alguém que lhes ofereça uma pedrada no charco. Atire-se uma também mas, ao invés de reaccionária, uma que seja pela revolução, pela construção de algo novo, por uma verdadeira terceira via que rejeite tanto o populismo como o liberalismo. Está na altura de criarmos, então, essa pedra!

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.

Ricardo N. Henriques é doutorado em Filosofia, no ramo de História da Filosofia, pela Universidade Nova de Lisboa. Gosta de videojogos, futebol e política.

1 Varoufakis, Yanis. Comportem-se como Adultos – A Minha Luta Contra o Establishment na Europa. Marcador. 2017