Esta é uma história contada em três atos. Nela são entrelaçadas memórias familiares, investigação e um esperançar sobre o papel dos museus no escrutínio do privilégio branco. No final, este é um texto sobre branquitude e sobre o saber-fazer branco. Ou, por outras palavras, sobre como brancos beneficiam do racismo. Mas esta é também uma história sobre como investigar o racismo torna o corpo da pessoa que investiga num campo de profunda e contínua porosidade que, em ricochete, influencia investigadora-investigação-investigadora. O que acontece quando a branquitude se vê a si própria escrutinada numa vitrine de museu?
Ato I
Um episódio familiar, ou a branquitude em ação
Nunca tinha visto aquele álbum de fotografias da minha família. Achei estranho. Cresci com a minha avó a contar histórias sobre os meus mais velhos a partir de álbuns como aquele. A cada virar de folha ia reconhecendo alguns dos rostos. Enquanto folheava o álbum ia ouvindo o meu pai, o meu tio e tia a contarem histórias sobre os familiares representados nas fotografias. A matriarca que nos une – a minha avó – estava também connosco. Mas já só de corpo presente. O Alzheimer já havia tomado conta.
À medida que as histórias eram desenroladas, folheava o álbum com uma curiosidade voraz de quem quer saber de onde vem, para saber onde está, e para onde vai. Vejo uma fotografia que chama imediatamente a minha atenção. É um retrato de família. Da minha família. O que chamou a minha atenção, no entanto, é que nela, junto à minha família branca, estava um homem negro.
Eu conhecia aquela sala, aqueles móveis, aquele quadro na parede. Era a casa da minha avó, onde cresci. A mesa que ocupa o eixo central da fotografia, é a mesma mesa em que eu tinha almoçado todos os dias da minha infância e adolescência. Nessa mesma mesa está retratado, ao centro, o meu avô ladeado dos filhos: o meu pai e os meus tios. Ao ombro do meu avô está um papagaio. A minha avó está à esquerda da imagem com um dos meus tios no seu colo, ainda bebé. A fotografia teria sido tirada em 1961.
Naquela casa onde cresci, onde só vi gente branca entrar, esteve, há mais de 60 anos, um homem negro a conviver com a minha família branca. Toda a representação daquele homem contrasta com o modo como a minha família está representada. No centro da composição, atrás do meu avô, ele está em pé; a minha família sentada. Ele veste um casaco preto formal com algum tipo de insígnia ilegível na lapela; a minha família, sentada à mesa, veste roupas mais informais e em tons claros. Ele negro; a minha família branca. Todos olham para a câmara numa pose e arranjo de móveis evidentemente coreografados.
Aponto para a figura daquele homem e pergunto de imediato à minha família: «Quem é esta pessoa?» A partir desta questão são cuspidas em catadupa um conjunto de afirmações que atuam como produtos e produtoras da branquitude.
L: Ah, é nosso primo. Qual era o nome dele?
R: Não é nada nosso primo!
V: Deve ser alguém que o pai trouxe lá de África.
L: É da família, sim. Não era aquele que esteve num acidente de avião?
S: Mas ele é um homem negro… Não sabia que havia pessoas negras na nossa família.
L: Não será mais indiano? Temos sangue indiano na família. Vou buscar a lupa para ver melhor.
R: Lá estás tu com as tuas coisas! Não é nada negro. Não vês que essa é a cor das pessoas lá da terra? De trabalharem ao sol… no campo... ficavam dessa cor.
Nesta cena familiar constam muitas das características do saber-fazer branco. Ser branco numa sociedade estruturalmente racista passa por aprender e apreender a branquitude para, então, aplicar e performar o privilégio branco no dia a dia. Exercitar o racismo no conforto do ambiente familiar.
Ato II
Escrutinar o branco para (des)aprender o racismo
Numa ordem social pautada pelo racismo estrutural, pessoas brancas beneficiam do privilégio branco. Isto é, pessoas brancas fazem parte do grupo racial com maior acesso a recursos materiais e simbólicos, em detrimento de pessoas não-brancas. Este privilégio é experienciado por brancos, independentemente de quererem ou não, ou destes privilégios serem usufruídos de forma consciente ou não.
Falar de privilégio branco é, também, falar de branquitude.1 Esta última pode ser entendida como uma herança capaz de garantir que, de geração em geração, brancos mantenham e consolidem o seu lugar cimeiro na hierarquia racial. Branquitude é, assim, o lugar social que brancos ocupam dentro do racismo; o lugar daqueles que beneficiam de uma sociedade racializada.
Branquitude é, simultaneamente, o lugar de topo na hierarquia do racismo, assim como os mecanismos de manutenção para que a estrutura desta hierarquia se mantenha imutável. Entre estes mecanismos de manutenção do status quo, destaca-se aquilo que Cida Bento cunhou por pacto da branquitude.2 Este é um pacto acordado entre brancos, mesmo que de forma tácita, e frequentemente de forma inconsciente. Trata-se de um pacto no qual nós – brancos – acordamos, coletivamente, em silenciar e ocultar o modo como beneficiámos historicamente do racismo e como continuamos, hoje, a dele beneficiar. Assinar e fazer cumprir o pacto da branquitude atua como garante da posição de brancos como beneficiários da hierarquia racial e, ao fazê-lo, na manutenção do racismo.
Para observar como o pacto da branquitude opera, basta verificar, no caso português, a organização de manifestações em que pessoas saem à rua em defesa de que «Portugal não é um país racista», como aconteceu em 20203 e, mais recentemente, em 2025.4 Esta é uma crença que, embora fortemente refutada, continua difundida na sociedade portuguesa.5
Negar o racismo é manter a hierarquia racial intacta. Negar o racismo é negar também que brancos beneficiam do racismo. Negar o racismo é poder afirmar: «não é racismo, é meritocracia». Negar o racismo é compactuar com o pacto da branquitude e afirmar: «Não é nada negro. Não vês que essa é a cor das pessoas lá da terra? De trabalharem ao sol… no campo... ficavam dessa cor.»
Assim, observar e escrutinar a branquitude permite um entendimento do racismo que desloca o foco das vítimas para os perpetradores; que centra o olhar, não no modo como o racismo prejudica não-brancos, mas como o racismo beneficia brancos. Este é um gesto alinhado com o entendimento de que racismo é um problema eminentemente branco e que, como tal, urge «tornar o racismo um assunto de brancos.»6
Proponho, neste texto, que falar de branquitude é também falar sobre um saber-fazer branco. Isto porque a branquitude, além do lugar social em que brancos beneficiam do racismo, corresponde também a um conhecimento com aplicação prática que pessoas brancas aprendem, apreendem e aplicam para que beneficiem da estrutura racial. Ninguém nasce branco,7 tornamo-nos brancos numa sociedade racializada. Ser branco é uma praxis. E parte dessa praxis passa pelo assinar do pacto silencioso e narcísico da branquitude.
Escrutinar o branco e o seu/nosso saber-fazer – como se monta e se desmonta – permite que nós, pessoas brancas, mapeemos, reconheçamos e instrumentalizemos a nossa branquitude e a nossa expertise no saber-fazer branco, aplicando-o na luta contra o racismo. Trata-se de uma ação alinhada com o que Lourenço Cardoso designa por branquitude crítica.8 Escrutinar o branco abre, assim, caminho para uma ação comprometida com o romper do pacto da branquitude, e, neste gesto, no atuar sob o compromisso de destabilizar e romper com o próprio racismo.
Sendo o racismo um projeto estrutural e estruturante da sociedade, a branquitude que é um dos seus pilares fundamentais, também se monta e desmonta a partir das instituições que emergem de uma estrutura social racista. Gesto que ocorre com particular vigor em instituições indissociáveis do colonialismo e do racismo, como é o caso dos museus.9 O que acontece quando o museu revela o pacto da branquitude, e, nesse processo, desestabiliza o privilégio branco? O que acontece quando o museu escrutina o branco?
Ato III
O que pode uma exposição no enfrentamento da branquitude?
Neste terceiro e último ato, evoco a exposição Não visitem a sala colonial10 que esteve patente no Museu de Lamego entre 16 de novembro de 2024 e 27 de abril de 2025. Esta foi uma exposição que, em vários momentos, e através de diferentes recursos e estratégias, escrutinou a branquitude. Nas linhas que se seguem vão ser abordados dois momentos, ambos retirados de um filme que fez parte da exposição. Refiro-me aqui a Sala Colonial: O Filme,11 realizado por Catarina Simão, curadora desta exposição.
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Estou no Museu de Lamego. É a primeira vez que visito a exposição Não visitem a sala colonial. Ainda antes de entrar no espaço expositivo, tenho uma longa conversa com alguns dos membros da equipa do museu. Conversamos sobre o projeto colonial português e suas heranças no presente. O facto de apresentar, logo à entrada, o meu cartão do Conselho Internacional de Museus (ICOM) revela, de imediato, que pertenço àquele lugar e àquele grupo. Estou entre pares, e sou vista como tal.
Começo a visitar a exposição. Observo e fotografo pontualmente alguns elementos que considero pertinentes no âmbito da investigação que estou a desenvolver.12 Escrevo notas rápidas no meu caderno e, quando sinto que não estou a ser observada, falo para o meu telemóvel, criando pequenas notas áudio.
Entro, finalmente, naquela que entendo ser a última sala da exposição. Nela é possível ver Sala Colonial: O Filme. É neste filme que encontro o elemento mais evidente de como esta é uma exposição que participa e faz parte de um jogo de espelhos no qual a branquitude vê-se a si própria – não só a ser representada – mas, também, escrutinada. Aqui, nesta exposição de museu, o branco é, simultaneamente, sujeito e objeto de análise. Ora de forma mais direta ora mais indireta, o racismo é um tema presente nesta exposição e, com ele, também a branquitude.

Análise através da aplicação de raio-X a uma escultura proveniente do arquipélago dos Bijagós, que representa o colono branco. Créditos: Museu de Lamego e Catarina Simão. Fonte: Sala Colonial: O Filme, 2024, 16:07
O escrutínio que esta exposição faz da branquitude é simbolicamente retratada pela imagem acima apresentada; um frame do já aqui referido filme. Nesta imagem é possível ver uma escultura proveniente do arquipélago dos Bijagós que representa o colono branco. A escultura está a ser sujeita a uma análise através da aplicação de raio-X. Se em termos materiais a escultura está a ser examinada em busca de informações não visíveis a olho nu, em termos simbólicos, e no contexto desta exposição e do próprio filme, esta imagem evoca o escrutinar do próprio colono branco.

José Roseira em sala de aula, na Escola Secundária de Latino Coelho em Lamego. Créditos: Museu de Lamego e Catarina Simão. Fonte: Sala Colonial: O Filme (2024, 19:48)
As cenas seguintes do filme debruçam-se sobre a perspetiva de José Roseira, primo-bisneto de Gil Roseira, doador da referida escultura. A imagem em cima apresentada diz respeito a um momento do filme em que José Roseira está em contexto de sala de aula, na Escola Secundária de Latino Coelho, em Lamego. Encontra-se a falar com alunos de uma turma de 10.º ano, no âmbito do projeto artístico e educativo Sala Colonial13 que serve de base da exposição. Nesta cena do filme, José Roseira partilha a sua experiência no desencobrir de histórias silenciadas da sua família. José Roseira é um homem branco. Atrás dele, projetada no quadro da sala de aula está uma fotografia ampliada. Nela, vê-se o retrato de uma mulher negra. É o retrato da sua tia Ana:
Mas então continuei a fazer perguntas: «quem é que era aquela Ana?» «Aquela Ana» é a irmã mais velha da minha avó. É a minha tia Ana que foi escondida da minha família porque era negra. Pronto. E quando eu confrontei a minha família com isto, a primeira reação foi fecharem-se e dizerem que eu não tinha nada a ver com o assunto. (…) Basicamente ele [o pai de Ana, Gil Roseira] mandou a vir [de São Tomé para Portugal] antes de ela ter idade para ter filhos com alguém negro.14
Sala Colonial: O Filme (2024, 19:38 - 20:47)
Ana de Assunção Roseira, nascida em São Tomé e Príncipe enquanto este era um território colonizado por Portugal. Quando tinha 11 anos, foi levada pelo seu pai para Portugal, num movimento que procurou garantir que ela não tivesse descendência negra. Quer isto dizer que deslocar a «tia Ana» para Portugal procurou garantir – ativa e conscientemente – o embranquecimento da família. Fala-se aqui do pacto da branquitude em ação. Da praxis do saber-fazer branco.
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O episódio narrado por José Roseira ecoa a cena familiar que eu havia narrado no Ato I deste texto. Este eco, evidentemente, foi aqui trazido de forma intencional. Em Não visitem a sala colonial observei não só uma exposição que escrutina a branquitude mas uma exposição cuja narrativa expositiva coloca a minha história-familiar-colonial em evidência e exibição. Não visitem a sala colonial fez com que eu visse a minha própria branquitude escrutinada numa vitrine de museu. Eu, branca, filha e herdeira do colonialismo, estava a ser o objeto de análise no museu.
Entrar na exposição Não visitem a sala colonial fez-me rememorar a «sala colonial» em que cresci: a casa da minha avó, habitada por objetos coloniais e profundos silêncios sobre a relação da minha família com a guerra colonial. Sobre esta casa, e sobre o papel destes objetos na construção do meu imaginário colonial/racista, já havia escrito antes em «O que pode um mergulho pelas memórias de um colonizador?».15 Tal como nas palavras que aqui escrevo, ambos os textos fazem parte de um gesto reflexivo desenvolvido com o objetivo de aprofundar a reflexão em torno do modo como o corpo social (e racial) de quem – como eu – investiga racismo, atravessa e é atravessado pela investigação.
Sendo eu uma mulher branca a desenvolver um estudo sobre racismo e sobre a relação dos museus portugueses na sua (des)construção, o meu corpo branco surge, simultaneamente, como objeto e instrumento de análise. Se por um lado examino a branquitude da qual faço parte e sou herdeira, por outro lado, o meu saber-fazer branco atua como ferramenta de investigação especialmente útil no trabalho de campo, nomeadamente, no acesso a informação, mas também na sua respetiva análise. Afinal de contas, eu conheço o saber-fazer branco. É a partir da sua praxis que interajo com o racismo e, naturalmente, com a investigação que conduzo.
Não visitem a sala colonial examinou o colono branco e a relação dos seus descendentes com o passado/presente colonial, observando atentamente as conexões que este estabelece com o racismo. Abordar o embranquecimento que ocorreu na família Roseira é um caso paradigmático deste gesto. A partir dele, torna-se possível levantar um conjunto de questões: Quem é que fica, e quem é que sai do retrato de família? Quais as implicações dessa escolha na (des)construção do racismo? Embora no caso da família Roseira seja um episódio pessoal, levar esta reflexão para uma exposição de museu, como acontece em Não visitem a sala colonial, implica deslocar a pergunta para o coletivo: E quando essa família é um país? Quando o retrato de família é o retrato de Portugal? Quem, e que identidades raciais ficam dentro, e quais ficam fora do retrato?

Detalhe de uma vitrine da exposição Não visitem a sala colonial: «O museu reflete quem somos ou quem não somos?». Créditos: Museu de Lamego e Catarina Simão. Fotografia: Sofia Carvalho, 2025
Sofia Alexandre Carvalho é doutoranda em Estudos do Património, com especialização em Museologia, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigadora CITCEM/FLUP. Bolseira de doutoramento FCT com o projeto «Narrativas (de)coloniais em museus: Instrumentos de (des)construção do racismo em Portugal» (2021.05924.BD).