[QUANTO VALE CADA UMA DE NÓS? SOBRE O TRABALHO SEXUAL E O MOVIMENTO FEMINISTA]

9.8.2025
Yoko Ono. Cut Piece (1964) © Minoru Niizuma 2015
Yoko Ono. Cut Piece (1964) © Minoru Niizuma 2015

A primeira vez que me defini como feminista tinha 14 anos. Sou muito diferente daquela menina, mas temos em comum sermos feministas. Somos feministas muito diferentes, e hoje não sei se marcharíamos lado a lado. Na altura, ser feminista era sobre confiança e a possibilidade de ser tudo o que eu quisesse. Não havia telhados de vidro que não se partissem e nada que o GRL PWR não enfrentasse. Hoje percebo que o que me fascinava era a ideia de pertença e a possibilidade de escolher tudo o que eu queria vir a ser.

Hoje aproximo-me mais de uma feminista zangada do que de uma feminista fascinada, e a ideia de escolha causa-me mais desconforto do que aquilo que me inspira. Cheguei até aqui pelas companheiras que conheci pelo caminho, e pelas que vieram antes de mim.

O MITO DA ESCOLHA E O FEMINISMO LIBERAL

A noção de choice feminism é um produto do feminismo liberal. Refere-se à ideia de que qualquer escolha que uma mulher faça será uma decisão feminista, por ser resultado de uma escolha livre de uma mulher. Por muito bonita que seja a ideia de que cada uma faz as suas próprias escolhas, este conceito é provavelmente a maior mentira que se vende a meninas que começam a sua jornada política.

A principal crítica apontada ao feminismo da escolha, que é nada mais do que um resultado do feminismo liberal, é de que este enfraquece o feminismo enquanto movimento social. O feminismo é um movimento coletivo, a luta das mulheres para o desmantelamento de um sistema opressivo que as tem oprimido por séculos. A opressão das mulheres ao abrigo do patriarcado é objetiva, sistémica – as mulheres são oprimidas, não por opções ou características individuais mas simplesmente pelo facto de serem mulheres. A ideia de que as escolhas individuais de cada mulher são inerentemente feministas não só ignora a dimensão coletiva do movimento feminista como ignora que todas as nossas escolhas acontecem dentro de um sistema patriarcal, em que crescemos e fomos socializadas. Negar essa influência em nós é ingénuo, e até cruel.

Daqui surgiu a minha inquietação e a minha grande desilusão com o mundo em que vivia. Ao longo da minha vida tive oportunidade de fazer escolhas. Não acredito que esta oportunidade seja universal, e gostava de refletir sobre as companheiras a quem nunca foi dada a opção de escolha.

QUEM ESCOLHE?

«Every man in this society benefits from the fact that women are prostituted whether or not every man uses a woman in prostitution. This should not have to be said but it has to be said: prostitution comes from male dominance, not from female nature. It is a political reality that exists because one group of people has and maintains power over another group of people.»
Andrea Dworkin, Prostitution and Male Supremacy, (1993)

Em várias conversas com companheiras, dou por mim a mencionar que acredito que a posição feminista em relação ao «trabalho sexual»/sistema da prostituição é a maior divisão do movimento feminista moderno.

Provavelmente, também é um dos quais que é mais difícil de falar.

A discussão sobre o sistema de prostituição ganha novas nuances enquanto se torna mais acessível aos seus compradores.

As principais razões reportadas para a entrada na prostituição de rua são a falta de outras opções. Falamos de uma maioria de mulheres, algumas imigrantes, mas todas elas de classes sociais baixas, e em risco de pobreza. Todas já ouvimos relatos destas mulheres, e todas já fomos confrontadas com esta realidade. Se é uma escolha, porque é que só é a opção de quem menos escolhas tem?

Hoje assistimos a novas formas de «trabalho sexual» – desde o sugaring, a trabalhos de escort, e ao OnlyFans, celebrado por permitir aos seus criadores ser donos do seu próprio conteúdo, disponibilizando com a regularidade que entenderem, sem intermédio de terceiros. Parece-me, por vezes, que a emergência de novas formas de «trabalho sexual» permitiu a sua glamorização. O «trabalho sexual» já não nos remonta à mulher que se prostitui na rua, controlada por um chulo, mas sim a uma milionária do OnlyFans, que em apenas três meses de produção de conteúdo comprou uma casa.

É vendida uma ideia de empoderamento, em que uma mulher toma pelas suas mãos os meios de produção da sua própria opressão. Mas esta lógica de empoderamento não pode ter lugar no movimento feminista porque, por si só, perpetua uma lógica patriarcal e capitalista que equipara o consentimento a uma mercadoria.

A verdade é que sabemos que, em situações de crise económica ou recessão, a oferta de «trabalho sexual» aumenta. Ao mesmo tempo, sabemos que a classe de trabalhadores sexuais é composta por mulheres, de classe baixa e em situações de vulnerabilidade. Se estas práticas são libertadoras, empoderadoras, porque é que a classe média e a classe alta não as escolhem? Porque é que os homens não as escolhem?

Uma lógica de se não os podemos derrotar, juntamo-nos a eles não é empoderamento. É a perpetuação de um sistema de violência contra as mulheres, dentro de um movimento cujo objetivo final é a sua completa destruição.

Ditam as leis do mercado que só há oferta se houver procura. Só existe «trabalho sexual» porque existe um mercado onde o corpo de uma mulher é um bem público, uma coisa, que pode ser vendida e comprada. A desumanização com que se reduz uma mulher e o consentimento a mais um bem no mercado é profundamente assustador, seja essa mulher que se disponibiliza no mercado seja um terceiro. O resultado é, também, o mesmo – o consentimento tem preço, e o acesso a uma mulher também. Para os compradores de sexo pouco mudou – continuam a poder consumir o produto de sempre, com a impunidade de sempre. Uma mulher continua a ser um objeto, que existe na esfera pública para quem a queira consumir; que tem um valor de mercado, pelo qual pode ser transacionada, e que será determinado pela famosa mão invisível.

Posto isto, e se a escolha é nossa, pergunto-vos, companheiras – quanto vale cada uma de nós?

Margarida Carvalho, 25 anos, criada no Porto. Feminista, adquiriu consciência de classe aos 14 anos. Mais viva do que morta, profundamente Inquieta.