Esta longa foi escrita pré-eleições legislativas e, agora no seu rescaldo, esta advertência nada vem acrescentar; apenas sublinhar – a marcador num amarelo berrante, a negrito e em maiúsculas – a urgência do que vocês lerão agora.
Respirar fundo, sentir a vibração. Pensar positivo e alinhar os chacras. Consultar os astros, tirar as cartas e confiar no universo. Esperar que tudo se manifeste. Enquanto isso, o mundo em guerra.
É preciso começar por dizer o óbvio: a espiritualidade não é neutra. O esoterismo, o tarô, a astrologia pop, o budismo de Instagram, a lei da manifestação, não vivem num plano elevado fora da história – são produtos inseridos em relações de classe, de poder e de dominação. Tornaram-se, como tudo neste sistema, mercadoria.
Não há como não ver a ironia: práticas que nasceram, muitas vezes, como formas de resistência simbólica à ordem dominante – saberes marginalizados, perseguidos e subterrâneos – foram absorvidas e manipuladas para servirem a ordem que fingem desafiar. O tarô já não é um oráculo das encruzilhadas; é um serviço de coaching emocional. A astrologia já não é uma linguagem do tempo e do destino colectivo; é um horóscopo de autoconhecimento consumível. A meditação já não é uma disciplina de silêncio e de recusa; é um calmante gratuito para aumentar os níveis de produtividade no local de trabalho.
Hoje, a espiritualidade tornou-se num bunker psicológico de luxo onde se esconde quem não quer sujar as mãos na matéria. E isso seria apenas patético, se não fosse principalmente perigoso.
Porque enquanto milhares se recolhem em busca do «eu superior», do «propósito da alma» e do «fluxo da abundância», os donos do mundo continuam a sua obra de destruição sem obstáculos. Não há resistência onde há resignação. E toda a espiritualidade que ensina a aceitar tudo como parte de um plano cósmico é, na prática, um braço ideológico do capital.
Não creio que a gravidade desta questão resida no uso do símbolo: está na regressão que lhe é inerente. Há quem diga que a espiritualidade ajuda na luta. Mas, hoje, a maioria usa-a para fugir dela. Para suspender o mundo, não para o enfrentar. Para justificar a apatia, não para canalizar a raiva.
E isso é extremamente útil. Porque um corpo que medita é um corpo que não protesta. Um corpo que «aceita» é um corpo que não se organiza. Um corpo que se foca no eu está ausente do nós. E o sistema sabe disso e agradece.
É muito mais fácil vender livros de auto-ajuda com arquétipos e signos do que construir um colectivo. É mais confortável falar da «cura interior» do que encarar o que nos adoece por fora: o capital, o Estado, o algoritmo. Fingem que é transcendência, que é expansão da consciência. Mas o que há é retracção, há recuo. Uma espiritualidade que não nos empurra para o outro, para o conflito, para a comunidade, não é expansão: é ruína.
A lógica do esoterismo actual é profundamente individualista. Está perfeitamente alinhada com a cultura neoliberal. Cada um por si, cada um a gerir as suas emoções, os seus traumas, a sua energia, o seu «caminho». O mundo fica em segundo plano. A política é vista como «energia negativa». O confronto como desequilíbrio.
É esta a lógica que enfraquece qualquer possibilidade de ruptura. Porque a raiva é necessária. O desconforto é necessário. A perda de equilíbrio é a condição para a mudança. Um mundo que mata, que explora, que humilha, não pode ser «curado» com rituais suaves.
E a mudança não começa nos astros. Começa aqui, na recusa prática. No gesto político quotidiano: na vizinha que impede um despejo, na trabalhadora que pára a produção, no colectivo que organiza merendas solidárias, na pessoa que enfrenta o chefe, que diz não ao abuso, que protege quem está em risco. Naquele que rasga cartazes fascistas, que desobedece, que responde, que age.
Emma Goldman afirmou que a verdadeira emancipação começa na recusa consciente à obediência e foi uma das grandes defensoras da acção directa e da recusa do sistema, acreditando que a libertação não viria de práticas passivas ou esotéricas, mas de uma acção que desafiasse directamente a ordem estabelecida. A acção directa não é só vandalismo ou confrontos em manifestações. É também a recusa miúda, íntima, quotidiana. É não pedir permissão para viver com dignidade. É saber desobedecer. É enfrentar. Não por heroísmo, mas por necessidade.
A espiritualidade que não nos move para a rua, para o embate, para o corpo a corpo com a estrutura, é só mais um luxo pequeno-burguês. Do que precisamos não é de mais oráculos, mas de mais activismo. Não de mapas astrais, mas de mapas de fuga. Não de alinhamento energético, mas de desvios do sistema. A espiritualidade que nos serve é a que ajuda a manter viva a chama da recusa, não a que nos ensina a apagá-la em nome da paz interior. Porque, hoje, esta paz é privilégio. E o privilégio é sempre um silêncio comprado.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.