Em anos recentes, tornei-me uma leitora ávida de literatura contemporânea, particularmente da chamada autoficção. Nesse gesto, incluo-me como engrenagem dessa tensão atual em que o Eu é, ao mesmo tempo, o centro de criação e um produto de mercado.
A autenticidade é hoje como uma marca registada, talvez a mais procurada, o melhor argumento de venda. As editoras anunciam-na como um selo de verdade, os leitores compram-na como quem adquire uma vida em segunda mão. Lê-se não apenas pela história mas pela promessa de autenticidade que o nome do autor e género literário transporta. Há uma fome de real, uma crença generalizada ilusória de que o íntimo é o último território a ser contaminado pelo capital, o menos contaminado, e, por isso, paradoxalmente, o mais lucrativo.
Mas o Eu não é uma invenção moderna da literatura. Sempre ocupou um lugar central, desde as Confissões de Santo Agostinho, passando por Rousseau, Duras, Proust, até Ernaux. Mesmo quando o narrador se oculta atrás de personagens, é a sua consciência que ordena o mundo que escreve. Pode inclusive afirmar-se que toda a ficção é autobiográfica. A construção narrativa e os seus elementos pertencem sempre à experiência vivida de quem escreve, por mais ficcionalizada e fragmentada que essa experiência seja espelhada no texto. Igualmente, toda a autobiografia pode ser vista como ficcionalizada, como experiências textuais em que o conteúdo é sujeito e filtrado pela vivência subjetiva do autor, bem como afetada pela falibilidade e reconstrução da memória. O real e o ficcional formam um contínuo instável: um mesmo acontecimento origina, facilmente, múltiplas realidades narradas, pelo menos tantas quantas as pessoas que presenciaram de alguma forma o evento em questão, com possibilidade de transformação no tempo e criação de várias narrativas por uma mesma pessoa.
O conceito de autoficção foi cunhado em 1977, pelo autor francês Serge Doubrovsky, ao descrever o seu livro Fils: «um romance em que a aventura da linguagem substitui a da ação.» O termo procurava dar nome a algo antigo, mas que se tornava particularmente consciente do seu próprio estatuto ficcional como elemento de categorização narrativa. É uma forma de escrita que aceita a contaminação entre o que se vive e o que se cria ter vivido, entre o autor e a personagem, sem a necessidade de os distinguir linearmente. A autoficção não propõe uma verdade sobre o autor, mas expõe o modo como a verdade se fabrica – na linguagem, na memória, na distância entre quem vive e quem narra.
A autoficção não se limita a disfarçar a vida do autor sob a forma de romance; antes, tenta representar a experiência como ela é vivida por dentro, subjetiva, fragmentada, permeável à invenção. Permite comentários, desvios, omissões, tudo o que a memória e a imaginação acrescentam à matéria do real. O narrador pode não ser a primeira pessoa, pode descrever cenas que nunca presenciou, apenas as que lhe chegaram por ecos ou pela necessidade de as imaginar. O que importa é a verdade que o autor reconhece em si, mesmo que os outros não a identifiquem como tal. Como afirmado por Teresa Carmody1, pode ser entendida como «um retrato não mimético de si mesmo», que procura explorar a construção performativa da identidade e da linguagem.
O impulso autoficcional, que surgiu com força nos finais do século XX, expandiu-se de tal forma que hoje roça o cliché. O gesto de escrever sobre si deixou de ser exceção; tornou-se quase uma exigência do presente. Desde o início do século XXI, a autoficção passou a ser identificada sobretudo com mulheres (Ernaux, Cusk, Heti, Kraus) e a ser lida como uma escrita feminina, de exposição e intimidade. O que antes era um gesto de introspeção tornou-se, aos olhos da crítica e máquina editorial, um género de mulheres, como se o ato de escrever sobre si fosse ligado intrinsecamente ao género. Historicamente, contudo, a autoficção começou por ser dominada por homens. Doubrovsky, Proust, Céline, Kerouac, Knausgaardl: todos exploraram o Eu e ficcionalizaram sobre ele. A diferença principal é que este era visto como um espaço de reflexão puramente social e filosófico, não como um objeto confessional. O masculino é apresentado e percecionado como universal, legítimo, enquanto o feminino é, posteriormente, lido como narcísico, sentimental, frágil. Quando um homem escreve sobre o quotidiano, é universal; quando uma mulher o faz, é íntimo.
Durante o modernismo e principalmente o pós-modernismo, muitos escritores homens reagiram à perda de centralidade do autor, e da perspetiva social de uma crise da masculinidade, criando narrativas autorreferenciais: o escritor como personagem, o criador que se inscreve na própria obra. A autoficção, nesse contexto, era um gesto de poder: o homem que se representava como herói da própria crise criativa. O Eu tornava-se tema porque era, até então, privilégio. Quando Annie Ernaux, Rachel Cusk ou Chris Kraus começaram a usar o mesmo dispositivo, o gesto mudava de sentido. Já não se tratava de reafirmar o poder da autoria, mas de questionar a própria estrutura que define quem tem o direito de narrar. As mulheres foram historicamente confinadas a géneros «menores»: cartas, diários, crónicas, discursos íntimos. Todos esses registos, por muito sofisticados que fossem, eram lidos como não literatura.
Mesmo no século XX, quando surgem as primeiras análises feministas da autoria feminina, o Eu das mulheres continua a ser tratado como suspeito: uma espécie de exposição emocional que diminuiria o valor estético do texto. Por isso, quando a autoficção se feminiza, a crítica muda de tom. O que fora um exercício de estilo ou de filosofia torna-se, de repente, um problema de exposição de sinceridade. Ernaux, ao relatar o aborto clandestino em L’Événement, é lida tanto pela sua coragem quanto pela crueza do relato, como se o mérito literário residisse apenas na intensidade do testemunho. Chris Kraus, em I Love Dick, transforma o desejo e usa a abjeção para a transformar numa teoria e numa forma de escrita; ainda assim, é recebida como diarista e epistolar do sexo. A assimetria é flagrante: o masculino como reflexão sobre o humano; o feminino como reflexo de uma vida. Mesmo a ocultação é lida de forma enviesada: Elena Ferrante escreve sob pseudónimo e, ainda assim, é perseguida por uma curiosidade quase policial. Como se, no caso de uma mulher, a separação entre autora e personagem fosse uma fraude a desmascarar. Escrever, para as mulheres, continua a ser justificar-se.
O poder feminista da autoficção está no modo como transforma o pessoal em político. Ao escreverem sobre si, as autoras reclamam o direito de serem sujeito e não apenas objeto da narrativa, de escreverem o corpo e a experiência a partir de si, não como figura observada, mas como voz com autoridade narrativa. Este poder não está apenas em temas, como corpo, desejo, maternidade, trauma, mas na forma. Ao colapsar a distância entre autora e narradora, questiona a própria hierarquia que define o que é universal e o que é particular. É uma exploração no campo literário que expõe como o Eu é sempre social, atravessado por classe e género.
Mas este gesto, apesar de libertador, não é neutro. A autoficção que o mercado consagra continua, em grande parte, a ser escrita por mulheres de contextos privilegiados, brancas, de classe média-alta, com capital cultural suficiente para transformar de forma mais ou menos livre a experiência em literatura. Estas autoras continuam a ocupar um lugar em que a sua intimidade poderá ser vista como universal. A experiência que se vende como a voz das mulheres continua a ser a de uma elite.
Durante décadas, as vozes marginalizadas foram traduzidas, filtradas ou apropriadas por quem detinha o privilégio de narrar. A reivindicação de falar por si, e não ser falado, é, por isso, uma conquista política. O narrador da autoficção é, por isso, uma figura literária, mas continua enraizado no Eu do autor e, com ele, nas suas circunstâncias sociais, históricas e corporais. Mesmo quando se afasta da primeira pessoa, a sua voz carrega o peso do lugar de onde fala. Mas, quando a identidade se transforma em etiqueta de venda, esse gesto emancipador é rapidamente absorvido pelo mercado. O que antes era marginal torna-se «nicho». Editoras e prémios literários aprenderam a capitalizar o «autêntico» como valor, a promover autores racializados, queer ou migrantes como representantes de uma diferença útil, consumível. Estes autores não são vistos como pessoas por inteiro, mas como instrumentos úteis, servindo mais a estética do capital do que uma conquista política das próprias comunidades. Assim, o mesmo sistema que outrora excluía essas vozes agora absorve-as, desde que falem de si num idioma que o homem ocidental branco reconheça como literatura, esse velho «leitor hegemónico». Como nota Tope Folarin2, a crítica anglófona celebra como «inovadores» sobretudo autores brancos que misturam o autobiográfico e o ficcional, enquanto escritores racializados, ao fazerem o mesmo, são classificados como «autobiográficos» ou «testemunhais».
A inovação formal é privilégio de quem já detém legitimidade cultural. Por isso, é essencial pensar a auto-ficção não como espelho do indivíduo, mas como biografia social, um conceito que desloca o foco do «eu» isolado para o contexto que o forma. Essa consciência social do Eu aproxima a autoficção da auto-teoria, esse género híbrido que conjuga experiência e reflexão, corpo e conceito. Audre Lorde, Gloria Anzaldúa ou Paul B. Preciado usam o Eu não para falar apenas de si, mas para testar ideias, disputar teorias, inscrever o corpo no pensamento. A auto-ficção, quando se cruza com este gesto, deixa de ser confissão – torna-se um método. Édouard Louis leva essa dimensão ao extremo: o Eu torna-se instrumento de crítica social, uma lente para revelar a violência da classe e do género, o modo como o corpo é moldado pelo desprezo e pela vergonha. Em História da Violência ou Quem Matou o Meu Pai, a exposição não é confissão, mas confrontação: um corpo a escrever contra as estruturas que o feriram.
A diferença, quando capitalizável, é rapidamente transformada em categoria de mercado: e poucos géneros se moldam tão bem a essa lógica como a autoficção. O termo, que nasceu como provocação teórica, masculina, passou a funcionar como slogan editorial. A literatura, como o cinema e as redes sociais, passou a participar da mania da autenticidade: essa obsessão contemporânea em consumir vidas verdadeiras, experiências genuínas, dores não mediadas. A autenticidade tornou-se o mais poderoso argumento de venda. Depois do descrédito das ideologias, do colapso dos grandes discursos e da saturação das imagens, resta-nos acreditar na verdade individual. O sentimento de estarmos atomizados, sem poder contar com solidariedade ou apoio, alimenta o desejo de nos vermos refletidos em narrativas de outros isolamentos. Esta fome do autêntico não é nova, mas ganha urgência num mundo filtrado por mediações constantes, que chega em pré-formatados, experiências embaladas, emoções traduzidas em algoritmo. A própria ideia de Eu é hoje atravessada por ecrãs, refratada pelas redes e pelo olhar dos outros. Já não se trata de distinguir o verdadeiro do falso, mas de perceber como a própria ideia de verdade se constrói, e como cada mediação redefine o que chamamos real.
No capitalismo, o Eu é também uma economia. As experiências pessoais transformaram-se em matéria-prima, e a intimidade é capital. As redes sociais são a base da sua infraestrutura: nelas, cada indivíduo é simultaneamente produtor e produto, autor e personagem. Como observam alguns teóricos3, entrámos numa fase do capitalismo afetivo em que a própria subjetividade é posta a trabalhar, «when it’s life itself that’s literally going to work»4. A escrita do Eu participa desse movimento: cada texto é também um gesto de exposição, uma oferta de identidade. Capitaliza-se a autenticidade, de preferência com limites progressivamente mais esbatidos e com artefactos que mobilizem os afetos. Não se trata apenas de voyeurismo, mas de uma estética do Eu que promete autenticidade. O mundo exige de nós que sejamos sinceros, originais, autênticos, mas essa exigência, que parece ética, é profundamente económica.
A autoficção, com o poder possivelmente libertador que carrega, tornou-se simultaneamente a categorização perfeita para uma cultura que precisa de acreditar que ainda existe algo real e por retratar, sob o formato de algo que não seja vendável. A crítica, quando celebra a coragem de um autor ao expor-se, reforça esse circuito mercantil: a sinceridade converte-se em mérito, e o mérito, em marca pessoal. Mas a auto-ficção não é apenas um sintoma do mercado; é também uma crítica a ele.
Num tempo de superexposição, a escrita do eu pode parecer redundante, mas é precisamente o excesso de exposição que a torna necessária. O Eu que se escreve sabe que está a ser observado; sabe que será lido como produto; e, ainda assim, insiste em falar. O narrador de autoficção é consciente do olhar que o observa e, por isso, joga com ele. Mostra e oculta, confessa e desvia, desestabiliza a expectativa de transparência. Muitos textos exploram deliberadamente essa ambiguidade. Sartre, há décadas, já descrevia esta situação quando dizia que o escritor se tornava «dador e dádiva ao mesmo tempo». Ernaux escreve sobre si para denunciar o que há de coletivo no pessoal: o aborto, o classismo, o patriarcado. Cusk usa a dissolução da narradora em Outline para desafiar a ideia de voz autoral e propor uma escrita relacional. Kraus faz do desejo uma forma de teoria e da humilhação um dispositivo político. A verdade, nesses textos, é performativa: não está nos factos, mas no modo como a linguagem os organiza. O leitor é convidado a ocupar a zona ambígua entre acreditar e duvidar. Esta ambiguidade é libertadora porque questiona a própria lógica do testemunho. É uma escrita que sabe do artifício e o usa para revelar as suas condições.
Ainda assim, a linha que separa crítica e complacência é fina. A autoficção é, por natureza, um campo de tensão entre liberdade e mercantilização. A mesma forma que liberta a voz individual é a que mais facilmente se adapta à lógica do consumo. O leitor compra a ilusão de acesso a uma vida, mas o texto, se é bom, devolve-lhe apenas a opacidade da linguagem. Talvez por isso o narrador de auto-ficção seja muitas vezes não fiável, não para enganar o leitor, mas para lhe mostrar que a verdade é sempre uma construção complexificada por múltiplos fatores biopsicossociais. A dúvida sobre o que é real e o que é inventado torna-se o próprio tema. O narrador «instável» serve para colapsar.
Numa época em que as fronteiras entre vida e performance se esbatem, o «eu» literário é inevitavelmente contaminado pela lógica da visibilidade. A figura do autor-marca tornou-se central: o nome próprio é uma assinatura e uma promessa. A curiosidade sobre quem escreve ultrapassa o texto, alimenta-se de entrevistas, redes, fotografias, gestos. A cultura do self-branding transformou o autor numa extensão do livro, e o livro numa extensão do perfil. Se a modernidade inventou o escritor solitário, a contemporaneidade inventou o escritor-visível: aquele que produz tanto a obra quanto a própria imagem. É o autor que se expõe, comenta, reitera, responde. A sua persona circula como paratexto permanente. Mesmo a recusa da visibilidade (o anonimato de Ferrante, o silêncio de Salinger) é lida como estratégia, convertida em narrativa. A autenticidade, afinal, também é uma performance.
Talvez seja isso que torna a boa auto-ficção tão rara: a dificuldade de manter, no mesmo gesto, a consciência crítica e a entrega emocional. As suas melhores obras são as que não se contentam com a exposição, mas interrogam a própria necessidade de expor-se. Questionam a gramática do real, a economia da dor, o fetichismo da verdade. Recusam a ingenuidade do «eu» puro e devolvem-nos um «eu» múltiplo, contraditório, histórico. Autoras como Sara Torres radicalizam essa tensão. Em Lo que hay e La seducción, o luto e o desejo queer são trabalhados como matéria de linguagem e pensamento, numa escrita que se move entre o ensaio, a teoria e a ficção. O corpo torna-se texto e conceito, espaço de intimidade e de discurso. A sua voz inscreve-se nesse lugar ambíguo onde o Eu é simultaneamente vulnerável e analítico, uma escrita que expõe, mas também pensa o ato de expor.
E talvez seja por isso que a autoficção se tornou o género mais emblemático do nosso tempo: porque incorpora essa contradição entre a necessidade de se afirmar e o desconforto de se vender. Escrever sobre si é, hoje, um gesto político e económico ao mesmo tempo. O Eu é a matéria e o produto, o sujeito e a mercadoria. Quanto mais o género se multiplica, mais é absorvido pelo sistema que pretendia interrogar. A escrita não escapa ao mundo; participa dele, com plena consciência da sua circulação material.
Carolina Monteiro é médica, aspirante a Psiquiatra, e pós-graduada em Sexualidade Humana. Entretanto, estuda a relação entre sistemas de saúde e alterações climáticas. Conhecida como a pessoa que passa demasiado tempo a ver filmes e a ler livros lésbicos.
![[O REAL EM SEGUNDA MÃO]](https://cdn.prod.website-files.com/6783a91157c5ce7778d0ca56/68f6d3205c743ff5afbeca89_IMG_1095.jpg)

