As últimas eleições autárquicas (como se precisássemos de mais provas) evidenciam um problema estrutural que já se arrasta há muito: o falhanço das coligações políticas e o vazio ideológico que se espalha pelo espectro político português. Embora o resultado de Lisboa tenha colocado o tema no centro do debate, este fenómeno não é exclusivo de uma eleição ou de um momento específico – é o reflexo de um sistema político que há muito deixou de se preocupar com princípios e propostas claras, rendendo-se a alianças feitas à pressa, apenas para garantir a sobrevivência eleitoral.
A solução para derrotar a direita ou a extrema-direita, dizem muitos, passa pela união das forças de esquerda. Mas a questão que fica no ar é: será que a união a qualquer preço, sem um compromisso ideológico verdadeiro, realmente traz a mudança de que o país precisa? (Spoiler: Não traz.) A experiência recente, e particularmente as coligações nas últimas eleições, mostra que essas alianças não produzem transformação substancial e servem para mascarar a ausência de alternativas viáveis.
Este fenómeno é particularmente evidente em Lisboa, onde partidos da esquerda se uniram não em torno de um projecto comum ou de um compromisso com a mudança, mas para derrotar o adversário – um adversário que, em muitos casos, partilha das mesmas falhas ideológicas, mas numa versão mais conservadora. O que se percebe, ao olhar para essas coligações, é que a verdadeira política ficou de lado.
Ainda por falar nesta coligação, vale lembrar que o João Ferreira seria, sem dúvida, um autarca muito mais bem preparado do que a Alexandra Leitão. Mas, mesmo supondo que a cabeça de lista da coligação fosse ele, nada garantiria a vitória. Porque, ironicamente, muitos daquela ala de centro-esquerda (que dizem querer unidade) não votariam numa mulher, enquanto muitos outros dessa mesma ala não votariam num comunista. Ou seja, mais do que ideologia, o voto é muitas vezes determinado por preconceitos e conveniências pessoais – o que só reforça a ausência de uma visão política clara.
Estamos a assistir a uma crise profunda de ideias. A política perdeu-se no meio de negociações e acordos que surgem como soluções fáceis, mas que não oferecem garantias de que as promessas de transformação se cumpram. Em nome de uma luta contra o «mal maior», os partidos sacrificam os seus princípios e tornam-se cúmplices de um sistema político que nada tem de renovador ou transformador. (Mas pelo menos há consensos, não é?)
Esse pragmatismo eleitoral – tão evidente nesta última coligação de esquerda – é um sintoma claro de uma falha mais profunda. Não é uma questão de partidos ou de eleições individuais, mas de uma crise generalizada no modo como a política é feita. O país não é, como muitos querem fazer crer, um reflexo do falhanço da esquerda apenas, mas de todo o espectro político, que ao longo dos anos foi deixando de lado a luta por ideais sólidos e claros em nome de uma sobrevivência política sem grande substância.
Neste contexto, a resistência de algumas forças políticas, como a CDU em Lisboa, que se recusaram a alinhar em coligações sem compromissos ideológicos, é digna de nota. A sua decisão de não embarcar em alianças oportunistas não é, como alguns querem sugerir, uma falha, mas uma tentativa de manter alguma coerência e de não ceder a esse pragmatismo. Claro que, como qualquer partido, a CDU tem as suas limitações ideológicas, mas a sua resistência coloca em evidência o verdadeiro dilema da política portuguesa: até que ponto a busca incessante pelo poder, sem uma visão clara, compromete a ideia de democracia e mudança real?
Como anarquista, acredito profundamente no poder local e na organização de base. Acredito que as soluções reais para os problemas das pessoas estão em organizações comunitárias, em respostas locais que partem das necessidades concretas e não de estratégias eleitorais. Não se trata de simplesmente derrotar a direita, seja ela moderada ou extrema. Trata-se de construir uma nova política, uma política que não se faça em nome do poder, mas em nome da transformação genuína da sociedade.
Não sei apresentar planos ou soluções – isso deixo para os políticos que vendem a ilusão de que sabem como governar – mas uma coisa é certa: a via da coligação não serve, não cumpre compromissos ideológicos, não se renova e não olha aos problemas concretos de quem vive e trabalha neste país. Essa é a realidade que ninguém nos pode negar.
Se a política, e particularmente a esquerda, realmente quer combater os interesses dominantes e os perigos da extrema-direita, precisa de começar por se renovar. Não é a coligação a qualquer preço que vai trazer a mudança de que as pessoas precisam, mas sim a coragem de assumir os riscos de uma política verdadeira, com um compromisso ideológico claro e sem medo de desafiar o status quo.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.
![[O REAL EM SEGUNDA MÃO]](https://cdn.prod.website-files.com/6783a91157c5ce7778d0ca56/68f6d3205c743ff5afbeca89_IMG_1095.jpg)

