[AINDA SOBRE COLIGAÇÕES]

21.10.2025
Mort de Sardanapale, Eugène Delacroix (1827) Musée du Louvre, Paris
Mort de Sardanapale, Eugène Delacroix (1827) Musée du Louvre, Paris

As últimas eleições autárquicas (como se precisássemos de mais provas) evidenciam um problema estrutural que já se arrasta há muito: o falhanço das coligações políticas e o vazio ideológico que se espalha pelo espectro político português. Embora o resultado de Lisboa tenha colocado o tema no centro do debate, este fenómeno não é exclusivo de uma eleição ou de um momento específico – é o reflexo de um sistema político que há muito deixou de se preocupar com princípios e propostas claras, rendendo-se a alianças feitas à pressa, apenas para garantir a sobrevivência eleitoral.

A solução para derrotar a direita ou a extrema-direita, dizem muitos, passa pela união das forças de esquerda. Mas a questão que fica no ar é: será que a união a qualquer preço, sem um compromisso ideológico verdadeiro, realmente traz a mudança de que o país precisa? (Spoiler: Não traz.) A experiência recente, e particularmente as coligações nas últimas eleições, mostra que essas alianças não produzem transformação substancial e servem para mascarar a ausência de alternativas viáveis.

Este fenómeno é particularmente evidente em Lisboa, onde partidos da esquerda se uniram não em torno de um projecto comum ou de um compromisso com a mudança, mas para derrotar o adversário – um adversário que, em muitos casos, partilha das mesmas falhas ideológicas, mas numa versão mais conservadora. O que se percebe, ao olhar para essas coligações, é que a verdadeira política ficou de lado.

Ainda por falar nesta coligação, vale lembrar que o João Ferreira seria, sem dúvida, um autarca muito mais bem preparado do que a Alexandra Leitão. Mas, mesmo supondo que a cabeça de lista da coligação fosse ele, nada garantiria a vitória. Porque, ironicamente, muitos daquela ala de centro-esquerda (que dizem querer unidade) não votariam numa mulher, enquanto muitos outros dessa mesma ala não votariam num comunista. Ou seja, mais do que ideologia, o voto é muitas vezes determinado por preconceitos e conveniências pessoais – o que só reforça a ausência de uma visão política clara.

Estamos a assistir a uma crise profunda de ideias. A política perdeu-se no meio de negociações e acordos que surgem como soluções fáceis, mas que não oferecem garantias de que as promessas de transformação se cumpram. Em nome de uma luta contra o «mal maior», os partidos sacrificam os seus princípios e tornam-se cúmplices de um sistema político que nada tem de renovador ou transformador. (Mas pelo menos há consensos, não é?)

Esse pragmatismo eleitoral – tão evidente nesta última coligação de esquerda – é um sintoma claro de uma falha mais profunda. Não é uma questão de partidos ou de eleições individuais, mas de uma crise generalizada no modo como a política é feita. O país não é, como muitos querem fazer crer, um reflexo do falhanço da esquerda apenas, mas de todo o espectro político, que ao longo dos anos foi deixando de lado a luta por ideais sólidos e claros em nome de uma sobrevivência política sem grande substância.

Neste contexto, a resistência de algumas forças políticas, como a CDU em Lisboa, que se recusaram a alinhar em coligações sem compromissos ideológicos, é digna de nota. A sua decisão de não embarcar em alianças oportunistas não é, como alguns querem sugerir, uma falha, mas uma tentativa de manter alguma coerência e de não ceder a esse pragmatismo. Claro que, como qualquer partido, a CDU tem as suas limitações ideológicas, mas a sua resistência coloca em evidência o verdadeiro dilema da política portuguesa: até que ponto a busca incessante pelo poder, sem uma visão clara, compromete a ideia de democracia e mudança real?

Como anarquista, acredito profundamente no poder local e na organização de base. Acredito que as soluções reais para os problemas das pessoas estão em organizações comunitárias, em respostas locais que partem das necessidades concretas e não de estratégias eleitorais. Não se trata de simplesmente derrotar a direita, seja ela moderada ou extrema. Trata-se de construir uma nova política, uma política que não se faça em nome do poder, mas em nome da transformação genuína da sociedade.

Não sei apresentar planos ou soluções – isso deixo para os políticos que vendem a ilusão de que sabem como governar – mas uma coisa é certa: a via da coligação não serve, não cumpre compromissos ideológicos, não se renova e não olha aos problemas concretos de quem vive e trabalha neste país. Essa é a realidade que ninguém nos pode negar.

Se a política, e particularmente a esquerda, realmente quer combater os interesses dominantes e os perigos da extrema-direita, precisa de começar por se renovar. Não é a coligação a qualquer preço que vai trazer a mudança de que as pessoas precisam, mas sim a coragem de assumir os riscos de uma política verdadeira, com um compromisso ideológico claro e sem medo de desafiar o status quo.

A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.