[ENSINAR SOBRE A LUTA DE CLASSES A ADOLESCENTES]

6.11.2025
Sala de Aula

Decorre o ano de 2025, finda outubro e as ruas cheiram a terra molhada. Celebro um ano civil como pedagoga (expressão que reclamo por oposição à simplificada «explicadora»), condição laboral que adotei e abracei, que hoje orgulhosamente detenho. A meio da época de avaliações, alcança-se a tão ansiada «semana sem testes», o que me permite planear aulas dinâmicas que não consistem na simples realização de exercícios de gramática.

Na semana passada, sentei-me com os alunos das 14h30 na sala do Centro de Explicações - 8º ano, cujas idades rondavam os 13-14 anos - e apresentei a minha proposta de aula: e se hoje assistirmos a uma curta-metragem? A questão foi, efetivamente, calorosamente aceite. Lembrei-me de uma curta-metragem à qual assisti duas noites antes, OPAL, de Jack Stauber, uma produção da Adult Swim, de 2020. Segundo a rede social Letterboxd (querendo evitar o desvio do propósito desta reflexão), a curta conta a história de «uma rapariga curiosa [que] investiga os gritos que ouve vindo de uma casa proibida do outro lado da rua», cuja narrativa remete para as consequências (e exemplos) do trauma infantil - a rapariga, OPAL, sonha com uma família feliz que dista da sua, negligente para consigo. Com efeito, OPAL suscitou um debate tímido entre os alunos sobre o seu significado, tendo a discussão culminado na redação de comentários, críticas e reflexões sobre o que tinham acabado de ver.

O sucesso desta aula e o entusiasmo que despertou 1:30h de «algo diferente» levaram-me a querer repetir a experiência. Novamente, e na mesma aula das 14h30, sentei-me com o mesmo grupo de alunos do 3º ciclo - desta vez, existia um televisor entre aquelas quatro paredes brancas, e, conhecendo a capacidade de atenção do grupo com que estava, decidi fazer seu uso. Apresentei a minha proposta de aula: e se hoje repetirmos a experiência da semana passada? Na tarde do dia em que me sento e escrevo esta reflexão, assistimos à curta Dinner for Few, de Nassos Vakalis, de 2015. Segundo o próprio, «retrata uma alegoria sociopolítica da nossa sociedade».

Numa leitura pessoal, quero descrever brevemente os elementos que compõem este filme. Automaticamente somos transportados para o ambiente de uma noite de tempestade. A imagem apresentada é a de um hotel que, abandonado, aparenta estar literalmente a cair aos pedaços. Numa das salas, um zoom leva-nos a uma cena de jantar: uma mesa abundante, com comida evidentemente a mais para o número de elementos sentados ao seu redor — seis porcos, cujas vestimentas remetem a figuras de classes mais altas da sociedade (magistrados, juízes, fatiotas acompanhadas de acessórios dourados e bolsos cheios). O que comiam provinha do tabuleiro de uma máquina (operada por uma sétima figura com aspecto de capataz), que por sua vez ingeria objetos comuns que estavam naquela sala, que poderão simbolizar setores públicos da sociedade - podem ver-se um avião e um vagão de comboio, podendo representar o setor dos transportes -, mas também bocados das paredes do hotel em ruínas, cortinas, peças de mobiliário, qualquer objeto que pudesse ser engolido pela máquina.

Ao longo da cena, pequenos gatos esfomeados andam em torno dos porcos e da mesa, miando por um pedaço da sua comida. Recebem deles restos e migalhas, até um rato de corda para se distrair — poderá esta ser uma alusão às duas classes que, popularmente, lutam entre si há milénios: a dos porcos que «comem tudos» e a dos gatos que suplicam por migalhas. O clímax da ação é atingido quando os gatos, magicamente, se unem e se transformam num tigre branco que devora os porcos, salvando-se apenas o «capataz», que, amedrontado, se esconde. Esperando este bicho adormecer, pé ante pé caminha na sua direção para determinar o seu destino cíclico, pois ao abrir o ventre do tigre branco, o «capataz» retira do seu interior pequenos gatos que se assemelham aos que se uniram e transformaram naquele tigre. Ora, finalizada a cena, somos transportados para uma outra divisão do hotel, onde os pequenos gatos são soltos e, novamente, metamorfoseiam-se — uns mantêm-se gatos, outros adquirem a forma de porcos. Completando o ciclo, «o capataz» inicia a sua rotina de servidão para com os porcos, retomando a atividade de selecionar objetos para os inserir na máquina, que os transforma em comida, servida numa nova mesa de jantar abundante. Do final, destaco o elemento cómico de retirada dos talheres de uma caixa com forma de urna.

Pois é facilmente estabelecida a comparação que o filme estabelece entre a luta de classes e o ciclo dos gatos e dos porcos — uns com tanto, outros com tão pouco. Pensaria que pré-adolescentes do 8º ano iriam conseguir decodificar a mensagem deste filme mudo — não só estava certa, como fui surpreendida. Ao anunciar que iriam analisar outro elemento audiovisual — desta vez, a canção Vampiros, de Zeca Afonso — para que eles próprios pudessem estabelecer a sua relação, por reflexão pessoal, ambos os elementos, começou a ecoar, por voz de um deles, a canção Grândola Vila Morena. Rapidamente coloquei a primeira canção, despertando um coro de vozes doces ao som da melodia. Em seguida, era hora de escrever, atividade detestada por muitos, adorada por outros tantos, mas desta vez foi ligeiramente aceite.

O exercício foi bem-sucedido; os resultados também. Surgiram reflexões sobre a luta de classes e o empoderamento da classe trabalhadora, a exploração histórica por parte das classes superiores e comparações com os dias de hoje, evidenciando as injustiças que eles próprios identificam no seu quotidiano. Não foi, no entanto, a primeira vez que este tipo de atividade foi desenvolvido no meu local de trabalho. Tenho a felicidade de ensinar crianças, educar jovens e contribuir para o seu desenvolvimento numa fase tão complicada das suas vidas. Estimular o seu pensamento crítico é fundamental, numa época cinzenta em que o discurso de ódio se torna a norma e as redes sociais — aquelas que eles frequentam quase ao minuto — são o seu gatilho. Sei, com certeza, que daquela hora e meia saíram ideias e ponderações, talvez uma conversa posterior entre si ou uma pesquisa sobre «quem é Zeca Afonso», esperançosamente, não no chatgpt.

«Estou a fazer o meu papel»,  pensei.

Raquel Vitorino, 25 anos, é mestre em Museologia e Museografia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A sua investigação foca-se no estudo da Memória dos passados traumáticos e seus resistentes em Portugal e no Estado espanhol, e na sua musealização. É adepta de futebol, especialmente do Benfica e do Barcelona, e hater n.º1 do Chat GPT.