Nos últimos meses, assistimos a um protagonismo por parte da Igreja Católica, não só pelo falecimento do Papa Francisco e a nomeação do Papa Leão XIV como pela divulgação da aclamada e premiada longa-metragem Conclave, que quase pareceu prever os eventos a que assistiríamos meses depois. O desfecho do filme, estranho a muitos, que consideram as paredes que guardam a religião católica as protetoras da binariedade de género, por excelência, não é, na verdade, uma originalidade no palco da história religiosa.
Não querendo arruinar o filme ao leitor, aqui seguirão alguns spoilers, todos eles necessários. Ao longo da narrativa, o Cardeal Benitez (Carlos Diehz), inicialmente desconhecido aos restantes membros do conclave, populariza-se progressivamente até à sua nomeação como sucessor do falecido Papa. Esta escolha levanta preocupações, quando o eleito confessa ser intersexo.1 Ou seja, nascera com órgãos sexuais femininos e masculinos, dobrando, por isso, as rígidas definições eclesiásticas atribuídas ao sexo e ao género.
O Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes) é credível na sua preocupação, livre, no entanto, de choque pela novidade, e credível, uma vez que, ao longo da sua história, a Igreja tem registado diversos relatos de casos de pessoas cujo discurso, hoje, poderia ser associado a uma possível disforia de género. No entanto, muito poucos foram os casos analisados com detalhe, até ao momento. Registaram-se ocorrências desde mulheres que usavam roupas tipicamente masculinas, alegando serem necessárias para viajarem com segurança ou fugirem a maridos abusivos, a pessoas acusadas de carregarem dois sexos na sua anatomia. Neste contexto, a Igreja tentou ocultar e/ou julgar diversos indivíduos a quem era atribuído o rótulo de «hermafrodita».
A definição de hermafroditismo foi sendo, no entanto, alterada ao longo da época medieval e moderna, em concordância com os valores e medos da sociedade, sendo que há uma maior perseguição destes indivíduos durante a idade moderna, quando o Concílio de Trento restringe e solidifica as noções de feminilidade e masculinidade, o que significa que qualquer pessoa cujas características físicas, psíquicas e/ou comportamentais divergissem minimamente da norma, eram candidatas a viver sob o peso deste rótulo, que as colocava, socialmente, à margem. Considerados monstros não humanos em finais da época medieval e inícios da época moderna, o interesse por estes indivíduos cresce durante a época moderna, passando a ser observados como uma anomalia anatómica, mais do que um castigo de Deus. A principal preocupação passa a ser a inclusão destas pessoas numa sociedade restritivamente estratificada.
No final do século XVI são produzidos diversos textos científicos e literários que demonstram o grande interesse em examinar o corpo de hermafroditas, sendo um assunto amplamente deliberado pela população. A incerteza quanto ao assunto partia também da dificuldade em determinar quem e em que contexto deveria atribuir o género definitivo com o qual o indivíduo se deveria passar a identificar, sendo que médicos, físicos e parteiras tomavam, muitas vezes, a tarefa de atribuir um género predominante ao recém-nascido. François Soyer enumerou alguns casos de indivíduos cujo género atribuído à nascença causava descrença pelas suas aparências e atitudes.2 Mais detalhadamente analisado foi o caso de Maria Duran3 que, tendo vivido a primeira parte da sua vida sob uma identidade feminina, foi julgada pela Inquisição depois de diversas acusações de comportamentos desviantes, entre os quais o uso de roupa tipicamente masculina, e o relacionamento sexual com freiras dos conventos em que esteve inserida, ato durante o qual, assumiu sempre a posição dominante, afirmando, alegadamente, ser um homem. No entanto, não sabemos até ao momento, qual a verdadeira opinião destas pessoas sobre a sua identidade, uma vez que os relatos dos inquéritos inquisitoriais se encontram escritos em discurso indireto, pela mão do inquisidor, logo, segundo a sua perspetiva. Além disso, as conceções atuais de género não existiam na época moderna, momento no qual género e sexo eram dois termos indissociáveis em sentido. Logo, é difícil saber de que forma estas pessoas compreendiam o seu comportamento e pensamento quando se desviavam da norma de género vigente.
O debate sobre hermafroditismo adensa-se ao longo da época moderna, particularmente a partir do século XVIII, quando certos físicos começam a negar a existência de hermafroditas, considerando-os mulheres com clitóris aumentados, ou Macroclitorideus, termo cunhado por James Parsons. Este ajudava a corporizar uma corrente que se vinha a desenvolver durante o século XVIII, em particular, que recusava a existência de dois sexos num só indivíduo. Parsons, médico e físico setecentista discordava da possibilidade de existência de hermafroditas, uma vez que um Deus perfeito, que criava o Homem à sua imagem nunca permitiria a existência de seres tão «imperfeitos».4 Apesar disso, e de forma humana e inovadora, combatia a discriminação e indiferença social para com os indivíduos sob acusação, considerando-os tão merecedores de dignidade como qualquer outro ser humano.
O debate sobre a realidade hermafrodita mantém-se ao longo de toda a época moderna, não só pela tentativa de explicar religiosa e/ou cientificamente a existência destes indivíduos mas também porque aproximava a população em geral de temas com os quais não tinha a possibilidade de contactar diariamente, por serem considerados impróprios, como a sexualidade. Com a crescente dinamização da imprensa rápida e barata, a imagem do hermafrodita torna-se, rapidamente, um assunto que prendia a atenção da população.5 Ao passo que a distribuição de imagens eróticas era estritamente proibida, desenhos anatómicos produzidos por profissionais de saúde, de indivíduos acusados de hermafroditismo, eram largamente consumidos com intuito pornográfico, sob o pretexto de divulgação científica, contribuindo para o sucesso comercial destes textos.
No que toca a correntes de pensamento, Palmira Costa indica que os autores modernos que escreveram sobre hermafroditas incluíam-se em duas grandes correntes de pensamento: a hipocrática («segundo a qual o sexo existia em continuum, do masculino extremo ao feminino extremo»,6 sendo os hermafroditas vistos como seres intermédios); e a aristotélica (que compreendia os géneros masculino e feminino como polos opostos, «admitindo estados intermediários significativos, sendo os hermafroditas vistos como seres com genitália duplicada ou redundante, e o seu sexo aparentemente ambíguo»7). Contrariamente ao posterior século XVIII, o século XVI observa um interesse pelas teorias hipocráticas. Hipócrates considerava que os hermafroditas se formavam quando duas sementes, uma feminina e uma masculina tinham a mesma forma, na conceção.8 Esta é apenas uma entre as muitas teorias que circulavam neste período quanto às causas da formação de hermafroditas, nomeadamente astrológicas, no entanto, não iremos explorá-las a fundo neste trabalho.
Rodrigo de Castro, no seu tratado sobre hermafroditas, em 1617, aceite pela maioria dos médicos nos séculos XVI e XVII, divide os hermafroditas em quatro classes, conforme o que pensa ser o sexo predominante: hermafrodita masculino, onde o sexo masculino é completo e «perfeito»; hermafrodita feminino, onde o sexo feminino é completo e «perfeito»; hermafroditas com ambos os sexos completos, mas incapazes de procriar; e hermafroditas masculino-femininos/perfeitos, possuidores de ambos os sexos completos e capacidade de procriar, o que lhes permitia a escolha do género pelo qual se queriam identificar. Uma vez que estamos perante uma sociedade que se organiza em torno do conceito familiar e de linhagem, entendemos o porquê desta classificação de hermafroditas ser tão focada na sua capacidade de gerar prole e na sua perfeição de genitais. Os hermafroditas perfeitos causavam particular ansiedade social, uma vez que tinham a capacidade de agir sexualmente tanto como homem como mulher, causando a instabilidade mais profunda entre estas classes, além de questionarem a relação hierárquica entre masculino e feminino, o que levava a acusações de depravação moral.
Ao passo que Castro entrega o poder de decisão do género ao hermafrodita, ao longo dos séculos seguintes vemos um crescimento da intervenção médica nesta decisão, uma vez que a atribuição de género a um hermafrodita tinha implicações legais cruciais, dado que os advogados não toleravam meios-termos, sendo o sexo era uma «condição» legal. «Uma vez classificado como masculino ou feminino, de acordo com a maioria das opiniões legais, o hermafrodita tinha direito, com algumas exceções, a todas as prerrogativas desse sexo».9 Uma novidade de inícios do século XVII é o facto de os testemunhos de outros indivíduos ajudarem na determinação do género do hermafrodita, dado que esta designação não era apenas conferida por motivos físicos mas também comportamentais. A crescente intervenção médica tinha também o intuito de prevenir práticas sexuais imorais, como a sodomia e o lesbianismo. Foram, no entanto, tentativas apenas parcialmente bem-sucedidas, uma vez que se deram desacordos entre os médicos quanto à categorização dos hermafroditas, dada a ambiguidade do corpo destes indivíduos, uma vez que, especialmente no século XVIII, um número considerável de médicos e físicos começava a duvidar da existência efetiva dos mesmos – uma conceção também associada à ideia de lascívia feminina e à preocupação masculina quanto a pretensões das mulheres de tomarem papéis tipicamente atribuídos aos homens.10
No entanto, a visão da feminilidade e masculinidade não era tomada com a mesma atenção por parte dos médicos e clericais, o que se podia dever, em parte, a uma relativa falta de interesse por parte do corpo masculino, ao contrário do feminino, considerado desconhecido e imperfeito. A masculinidade era mais pensada em termos sociais e comportamentais do que anatómicos, dado que o corpo de um homem era considerado perfeito e estável, sem ciclos que alterassem o seu humor, como as mulheres com a menstruação. Dito isto, era um «repositório de expectativas sociais e culturais»,11 uma vez que a masculinidade era vista como o garante da perpetuação da sociedade como era conhecida, através da procriação e envolvimento político. A aparência e o porte de órgãos genitais masculinos não eram suficientes, apesar de estes deverem provar ser capazes de realizar as «tarefas» previstas; sendo que também a postura e os comportamentos ajudavam a tornar um ser «completamente» masculino.12 No entanto, também contacto excessivo com mulheres era visto como uma forma de perda de masculinidade, uma vez que as mulheres esgotariam os homens das suas substâncias vitais.
Em conclusão, durante a idade moderna, podemos identificar um grande medo e desconfiança associada a indivíduos que desafiavam a estratificação social e genderizada da sociedade, muito incutida pela religião e concebida com o intuito de manter a estabilidade entre as dinâmicas de poder. Esta marginalização estendeu-se até aos dias de hoje.
A ideia de hermafrodita não partia apenas da fisionomia de um determinado indivíduo, sendo que, numa sociedade em que os comportamentos e o vestuário estavam intrinsecamente ligados ao género de um cidadão, vestir o traje destinado ao género oposto, ou colocar-se em situações sociais fora da norma atribuída à sua condição, indicavam já um desvio. Também a homossexualidade, em certos casos, era pensada como um indício de hermafroditismo.
O medo e o horror do desconhecido sempre fizeram parte da história da humanidade, sendo que os indivíduos que desafiavam a norma traziam consigo a possibilidade de um mundo novo, uma transição da ordem e crenças implantadas na sociedade, crenças estas muito enraizadas pela Igreja, nomeadamente, que legitimavam uma determinada ordem de poder.
Rafaela de Vasconcelos tem 24 anos e é estudante de mestrado em História na FCSH-UNL. Adora ler sobre a dinastia Tudor e especializa-se em história da moda e conceções de género na época moderna. Secretamente quer usar corpetes renascentistas.