Quando Percy Shelley argumentou «Poets are the unacknowledged legislators of the world»¹, estes legisladores eram, na sua maioria, masculinos. Apenas no século seguinte viria Virginia Woolf a exigir, para as mulheres, um quarto só seu², de forma que conseguissem concretizar as suas aptidões artísticas. Volvido mais um século, e chegando à atualidade, o romance constitui um dos poucos bastiões literários dominados pelas mulheres, sendo estas quem mais os escrevem e leem. Tal tornou-se evidente na Feira do Livro de Lisboa de 2025, onde centenas de leitoras esperaram por um autógrafo de Penelope Douglas. No dia seguinte, um público maioritariamente jovem e feminino voltou a ocupar a FNAC Colombo, para ouvir a escritora best-seller do New York Times e do Wall Street Journal. A proeminência de Douglas deve-se, em grande parte, à proliferação dos seus romances no BookTok, termo pela qual ficou conhecida a comunidade dedicada à leitura e literatura na plataforma digital TikTok.
O BookTok tem, nos recentes anos, provado consistentemente a sua capacidade de criar verdadeiros fenómenos literários, designadamente Haunting Adeline³ e Lights Out⁴. A ascendência, em fama, destes títulos segue uma fórmula peculiar, surpreendentemente democrática, segundo o qual estes se disseminam de forma orgânica, mediante um interesse genuíno e consensual entre os integrantes da comunidade. Assegurado o momentum em torno de certo livro, entram em cena os profissionais do mercado livreiro: as livrarias publicitam-no junto dos leitores e os editores enviam exemplares a influencers. Consequentemente, seria incorreto afirmar que se trata de uma estrutura hierárquica, segundo a qual um conjunto exclusivo de criadores, em conivência com as grandes editoras e livrarias, ditam as tendências literárias, seguindo-lhes, em cascata, os criadores de menor dimensão e, finalmente, o público-alvo deste conteúdo⁵.
Assim, a análise dos livros proeminentes no BookTok, incluindo os de Douglas, não constitui uma ventura infecunda. Pelo contrário, revela o trabalho «legislador» destas escritoras, bem como as propensões e gostos das participantes da comunidade. Por isso, peço ao leitor que largue mão de qualquer instinto paternalista que possa nutrir pelo romance enquanto género literário, entendendo-o a priori como uma arte menor, incapaz de expressar qualquer ideia acerca do mundo envolvente. Antes, impomos que leve a sério o seu conteúdo, mesmo nos momentos em que se mostra tão pouco sério, e que extraia das palavras deliberadamente escolhidas pela respetiva autora o seu devido significado. De facto, as personagens adiante são feitas de papel, a sua existência depende da imaginação, mas neste curto ensaio, ganharão vida. São a menina que aprende sobre o amor através dos livros, são o familiar que abusa do seu poder e são o namorado que controla a parceira com impunidade.
Credence segue Tiernan que perde ambos os pais num duplo suicídio. O luto revela-se complexo, dada a negligência parental que sofreu. Nesta conjuntura de especial vulnerabilidade, recebe uma chamada do seu tio Jake, meio-irmão do seu falecido pai, que a convida a visitar a remota cabana onde vive, juntamente com os dois filhos.
Rapidamente multiplicam-se os momentos de tensão sexual entre ambos. A certo ponto, Jake coloca a mão da sobrinha na sua virilha, culpando-a por incitar nele tamanha luxúria. Pouco depois de a adolescente ascender à maioridade, as personagens envolvem-se sexualmente várias vezes. Sabemos, através do monólogo mental de Jake, que este pensa no incesto como a derradeira vingança contra o pai de Tiernan, por quem nutre tanto ódio. Cientes do sucedido, os primos mais velhos, troçam-na. Um deles, Kaleb, chega a cuspir-lhe na cara e marcar a sua testa, presumivelmente com a palavra «puta».
Kaleb, de 22 anos, conhece Tiernan pela primeira vez e, imediatamente, tenta violá-la. Esta implora-lhe que pare, apesar de secretamente querer que continue. Noah impede-o de prosseguir, exclamando que se trata da prima de ambos e não de uma mulher qualquer. Nem este apelo o demove, tendo em conta que rouba a sua roupa interior, masturba-se à sua frente sem o seu consentimento e, num ataque selvagem, acaba mesmo por violar Tiernan. Escolhemos transcrever essa passagem, por julgar que nenhuma paráfrase poderá fazer jus à bárbara transgressão:
He threads a hand through my hair, gripping the back of my scalp, and for a moment, I can’t breathe. All I hear is the sound of skin hitting skin as he fists his hands and makes my body hurt.
«Kaleb, stop.» (…)
Tears hang at the corner of my eyes, and for a moment, all I can do is hang on as he pumps harder and faster.
It’s too deep, though. It hurts.
He’s taking. Fucking me like I’m nothing.
«Kaleb, stop.»
He doesn’t hear me, though, his hand landing on my ass with a loud whack and his breath pouring in and out of his lungs. I suck in a cry, the belt digging into my skin.
«Stop!» I scream. ⁶
Tiernan consegue escapar das suas amarras, em direção ao quarto de Noah. Este explica-lhe que Kaleb teve uma infância traumatizante, informação que funciona como uma justificação dos seus comportamentos. Ciente disto, Tiernan resolve amá-lo incondicionalmente e, assim, acaba por redimi-lo. Reforçando a tese de que o ónus de reabilitar o abusador reside na vítima, o livro termina cinco anos depois, com o casal, satisfeito e apaixonado, a perfilhar um menino, criando-o junto dos familiares que protagonizam a história.
Ora, não obstante a exploração clara da personagem feminina às mãos de um homem de meia-idade, seu familiar, Douglas concede à adolescente órfã, abusada uma e outra vez, a fachada de agência. Tiernan rejeita constantemente o título de vítima, na verdade, caracteriza explicitamente as experiências como positivas, pois proporcionam-lhe grande prazer. A irresponsabilidade na abordagem destes temas na obra ultrapassam a negligência, já que determinados detalhes enfatizam propositadamente a ingenuidade da adolescente, designadamente o facto de usar tranças, fazer os trabalhos de casa e possuir um corpo infantil, o que consiste numa clara apologia à pedofilia.
No evento na FNAC Colombo mencionado supra, a influencer do BookTok que dirige a sessão, pergunta a Douglas quantas das suas personagens estariam na prisão, se fossem reais, o que incita um riso cúmplice da audiência⁷. Qualquer culpa em consumir literatura erótica que romantiza o abuso sexual dissolve-se entre as gargalhadas, é defletido pelo ténue véu da ficção. Porém, para milhões de mulheres, feitas de carne e osso, os crimes cometidos na página são realidade. Acresce que os mitos nestas corroborados representam entraves à sua denúncia, designadamente o de que as vítimas secretamente desejam os atos cometidos à força por terceiros e que a coação resulta de um impulso incontrolável de um homem, incitado pela mulher. Só nos EUA, país onde decorre a ação de Credence, uma violação ocorre a cada 68 segundos⁸. Resta perguntar o que sentiriam essas mesmas mulheres, sabendo que o seu maior pesadelo, o terror de ser despojada da sua autonomia sexual, é vendido nas livrarias sob o nome de romance erótico.
A violência misógina acompanha as mulheres nas várias facetas do quotidiano, desde a escola, ao trabalho e ao domicílio. Enquanto seria expectável que as leitoras recorressem à ficção com o intuito de escapar para novo mundo possível, pautado pelo amor igual, em Credence, a coação masculina é ubíqua. Tendo em conta que mudar radicalmente as condições materiais que viabilizam a opressão feminina encontra-se fora do alcance da maioria, as leitoras contentam-se em conformar-se à realidade patriarcal, apenas alterando o seu significado. Se for impossível conceber um mundo onde a mulher não seja subordinada pelo seu companheiro, então, nesta realidade imaginada, um murro vale tanto quanto um beijo e um violador transfigura-se num bom parceiro.
Por fim, muitos veem a escrita feminina como um fim em si mesmo, intuitivamente emancipatório, mesmo quando esta recicla a linguagem da velha guarda misógina. Assim, se for verdade, como escreveu o Marquês de Sade⁹, que todas as paixões requerem vítimas, estas permanecem as mesmas, inclusive quando uma mulher, depois de conquistar um quarto só para si, decide escrever.
Matilde Curvão, 24 anos, é estudante de Direito e Línguas, Literaturas e Culturas, na vertente de Estudos Portugueses e Ingleses. Previamente escritora clandestina, partilha agora o seu interesse pela literatura feminina. Com 13 anos, foi a pessoa que mais livros requisitou da Biblioteca Municipal de Esposende.