[AS ESCOLHAS QUE VAMOS TER DE FAZER]

14.10.2025
CURTA

Em Lisboa, no rescaldo das eleições autárquicas, a esquerda começa a trocar acusações. Quem é o culpado? Apoiantes da coligação PS-L-BE-PAN acusam a CDU de ser responsável pela vitória de Carlos Moedas (ou derrota de Alexandra Leitão). Se tivessem ido coligados, diz-se, a vitória era certa. Os apoiantes de João Ferreira ripostam: se não tivesse havido um apelo desenfreado ao «voto útil» por parte da coligação, a CDU teria elegido dois vereadores, e não um – precisavam de apenas doze votos. A casa já estava a arder, mas os resultados destas eleições funcionam como mais uma acendalha para uma esquerda fraturada que se vai desdobrando em mais fações rumo ao desaparecimento.

As acusações que os apoiantes de Alexandra Leitão e de João Ferreira trocam são pouco úteis e, mais importante, impossíveis de provar. Moedas ganhou a Câmara por uma distância de 20 mil votos de Leitão. João Ferreira somou 26 mil votos. Será certo que, se tivessem ido todos coligados, haveria uma mera transferência dos votos da CDU para a coligação de Alexandra Leitão? Moedas perderia por 6 mil votos? Não há forma de saber. E até arrisco dizer que, mesmo em caso de coligação de toda a esquerda, Moedas provavelmente tinha vencido. 

Ao concorrer «sozinho» à esquerda, João Ferreira tornou-se numa escolha fácil para quem vota à esquerda do PS, mesmo que em coligação com BE e Livre. Evitou-se a proliferação de votos à esquerda do PS, como acontece nas legislativas, com cada partido dessa área a atingir uns meros 1% a 5%. Ao correr sozinha nessa pista, a CDU conquistou 10%. Aléém disso, com uma ajuda de Moedas e da comunicação social de direita, que viam na divisão de votos entre Leitão e Ferreira uma chave para a sua própria vitória, a imagem da CDU foi polida e tornou-se na escolha de muita gente que nunca votaria no PCP. Aliando a sua qualidade de autarca a uma campanha mediática que o tratou muito generosamente, João Ferreira conquistou o lugar de candidato virtuoso, capturando facilmente votos à esquerda e conquistando improváveis votos de direita. Será que, se tivesse ido coligado com Alexandra Leitão, não teria perdido esta «aura» e, por consequência, muitos dos 26 mil votos que conquistou? Provavelmente.

Mas, reconhecendo a grande qualidade de João Ferreira enquanto autarca, coloca-se a seguinte questão – uma questão que não serve apenas para as eleições que passaram, mas para as que virão: será que vale a pena ir sozinho?

Vivemos tempos em que o neofascismo cresce galopantemente pelo Ocidente, em que os nossos projetos políticos – projetos anticapitalistas – são dizimados do xadrez político das democracias liberais. A escolha que inevitavelmente vamos ter de fazer será a de nos juntarmos estrategicamente para sobreviver, ou desaparecer separados (quando falo de desaparecimento, falo de desaparecimento na esfera política pública, e não da «rua», onde certamente se continuará a fazer a luta). O dilema subjacente e, portanto, o seguinte: vamos ceder em alguns dos nossos pontos programáticos em nome da nossa sobrevivência institucional? Ou vamos desaparecer dessa esfera, mantendo o mesmo programa independentemente de cálculos eleitorais? 

Suspeito de quem tem uma resposta fácil a este dilema, que toda a esquerda alinhada na prática parlamentar enfrenta. Suspeito porque o passado nos dá resultados contraditórios: em alguns casos, as alianças estratégicas da esquerda radical com a centro-esquerda resultaram na criação de «bolhas de ar» que permitiram a contenção de forças fascistas; noutros casos, estas alianças levaram à descredibilização dos atores da esquerda radical que deram a mão ao «centrão», resultando no seu desaparecimento. Podemos aprender com a História, mas, neste caso, a História fala a várias vozes.

O caso de Lisboa nas autárquicas dá-nos as lições que quisermos tirar dele, consoante as nossas preferências. Uns dirão que é um exemplo de como as grandes coligações de esquerda com o centro são um fracasso; outros dirão que, se a coligação fosse ainda maior, abrangendo a CDU, seria um sucesso. Olhando para os números, apenas uma coisa é certa: todos perderam. A CDU ficou reduzida a um vereador, e Alexandra Leitão não conseguiu vencer as eleições. O plano nacional é tão ou mais desolador: a CDU perde câmara atrás de câmara, a pouca representação autárquica do Bloco é dizimada. Podemos alavancar as teorias que quisermos, mas há algo de inegável: estamos a perder e a desaparecer. 

A cada eleição que se segue, vamos ter de fazer estas escolhas, de responder ao dilema. O resultado de João Ferreira demonstra que pode haver espaço para uma candidatura de esquerda anticapitalista com expressão eleitoral – mas apenas se os partidos desse espaço não estiverem a concorrer uns contra os outros. Em Lisboa, isto aconteceu de forma «negativa» – não por haver um acordo entre a CDU, o Bloco (e eventualmente o Livre, ainda que estes não se afirmem anticapitalistas), mas porque o Bloco e o Livre se aliaram ao centro. Foi uma exceção: em eleições futuras, como as presidenciais, o mesmo não acontecerá. Voltaremos à separação, à divisão, à proliferação de votos. Fechados nas suas cúpulas, cada um destes partidos culpará os outros. Em tempos de crise, arriscamos cair mais divididos que nunca. Aí, restarão as ruas.