Há uns dias, fui ver uma peça de teatro encenada pelo António Pires, da obra À Espera de Godot, de Samuel Beckett, no Teatro do Bairro, em Lisboa. É das minhas obras de teatro favoritas e estava entusiasmada. A obra, entre muito que se pode falar sobre ela, explora o absurdo da existência humana – duas personagens, Vladimir e Estragon, à espera de um tal «Godot» que nunca chega, enquanto o tempo passa, a esperança se esvai, e a angústia só aumenta. Uma verdadeira viagem existencial. Mas o que me deixou a pensar não foi propriamente a profundidade da peça, mas sim as reacções da plateia.
Notei uma presença significativa de jovens na casa dos dezoito, vinte anos. Durante a peça, muitos riram em momentos que, para mim, tinham um peso trágico. A princípio, julguei aquilo como simples falta de noção – mas depois percebi que talvez fosse o contrário. Crescer num mundo em que tudo é fragmentado, imediato e um bocadinho absurdo pode tornar Beckett estranhamente familiar. Quem sabe se não é precisamente esta a geração que melhor reconhece o vazio – e que, por isso mesmo, se ri dele. Pode parecer alienação, mas talvez seja apenas uma forma diferente de sobreviver ao desconforto.
Agora, o que realmente me perturbou foi o casal na primeira fila, na casa dos quarenta. Um daqueles casais: postura impecável, roupa cuidadosamente despreocupada e, claro, um vocabulário afinado. No intervalo, ouvia-o a pronunciar Camus com todo o rigor fonético, como se estivesse a fazer uma audição para a Sorbonne. Os livros são obviamente lidos na língua francesa, não haverá uma tradução que fará jus àquela sonoridade romântica. Mas depois, quando falava de Beckett – o autor da peça que estavam a ver, repare-se – chamava-lhe «o gajo, o Beckett». Assim mesmo: «o gajo que escreveu isto». E durante a peça, riam e gargalhavam muito. Lucky, escravo de Pozzo, acorrentado e fiel ao seu dono, era chicoteado. E eles riam e gargalhavam muito. Estragon confessava Sou infeliz. Vladimir respondia Não me digas! Desde quando? Estragon respondia Já me esqueci. E eles riam e gargalhavam muito. Ali, na primeira fila, corpos movidos pelas gargalhadas, escorregando nas cadeiras. (Gostava de vos dizer que exagero, mas infelizmente faço aqui um retrato fiel.)
E foi aí que me caiu a ficha: este casal não estava só a assistir à peça. Eles eram a peça. Ou melhor, eram o produto do riso para Beckett. Pozzo, o burguês vaidoso, autoritário, cego (literal e metaforicamente), está todo lá – na postura, na superioridade encenada, na incapacidade de perceber o essencial. Riam-se de Lucky, sem se darem conta de que o verdadeiro ridículo, aos olhos do autor, talvez fossem eles. E há qualquer coisa de deliciosamente irónico nisto. Gente que ostenta referências culturais como se fossem medalhas, mas que falha redondamente em captar o que está mesmo diante dos olhos. Um dos propósitos torna-se assim claro: Beckett escreveu para expor o ridículo de quem finge perceber tudo. Já comprei bilhetes para ir uma segunda vez, na esperança de, desta vez, poder assistir à peça de teatro que acontece no palco.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.

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